Um livro com 105 páginas, mas de uma profundidade capaz de
tirar o folego do leitor, na medida em que o remete a reflexões sobre
identidade e cultura, individual e coletiva. Este é Outros Cantos, de Maria Valéria Rezente, publicado em 2016 pela
editora Objetiva, e escolhido para a leitura do mês de agosto do
#leiamulheresnatal, que teve encontro realizado no dia 26, na Livraria Saraiva.
O texto é dividido em três partes que representam a
sequência das memórias da autora, revividas durante uma viagem de ônibus para a
cidade do sertão nordestino, na qual tinha vivido 40 anos antes.
À medida que o carro avançava mais alguns quilômetros para
perto da cidade de Olho D’Água, a narradora relembra os meses que viveu naquele
lugar, ainda na década de 1970, para atuar como professora do Mobral, durante o
regime militar no Brasil.
Enquanto a infraestrutura básica para as aulas e o contrato
firmado com a Prefeitura não se concretizavam, ela passou a integrar a comunidade
local para conhecer e se familiarizar com os hábitos e expectativas daqueles que,
num futuro breve, se tornariam seus alunos.
A convivência relevou a ela muito mais do que os desafios a
serem enfrentados para despertar o interesse dos moradores pela alfabetização.
A realidade de luta diária pela sobrevivência se revelou mais dura do que o
imaginado, ao mesmo tempo em que revelou outros significados, como o da resiliência
daquelas pessoas diante de tantas dificuldades, em especial das mulheres que
viam os homens partir em busca de condições melhores de vida e oportunidades de
trabalho, deixando para trás as famílias unidas pela esperança do retorno deles,
algum dia.
A união entre os moradores era fortalecida pela cultura pastoril
e pela devoção à Nossa Senhora do Ó e a São José. O hábito da reza e dos
cantos, muitas vezes sem significado para a narradora, tornaram-se essencial
para aquela que também acabou encontrando na fé respostas para a construção da paciência,
tão bem cultivada por aqueles que, num primeiro momento, pareciam ter uma visão
tão limitada do mundo, mas com o passar dos dias revelaram que não é bem assim.
Maior que os duros fatos, incontornáveis, só a força dos sonhos e da fantasia, do assombro e dos encantados a puxar a vida para a frente, dia após dia. Era disso que lhes interessava falar...
Quarenta anos depois, a autora revela que naqueles meses
vividos em Olho D’Água, compreendeu na prática os ensinamentos do educador
Paulo Freire, sobre a importância da inclusão do ambiente no qual os educandos estão
inseridos para dar significado aos novos conhecimentos que se pretende
apresentar.
Mais do que isso, a autora relembra que a simplicidade e a
falta de conhecimento das letras, não tornam as pessoas menos inteligentes e
incapazes de perceber a realidade e que o cotidiano mostra o contrário disso.
Os ensinamentos ali aprendidos foram levados para a vida e comparados com as experiências
de quem visitou três continentes em quatro décadas, mas queria novamente estar
ali, mesmo sabendo que a realidade a ser encontrada seria outra, assim como os
significados, mas não menos dura.
Rio-me para dentro, penso em como ganha novos sentidos e permanece autônoma na memória uma estrofe apartada de seu poema original. De quantos farrapos, recolhidos assim em qualquer caminho, se alimenta nossa imaginação? Decerto minha vida tinha ganhado novo e renitente sentido a partir daquele retalho vivido entre gentes e cactos esquálidos.
Em relação aos significados, se num primeiro momento somos
levados a pensar que o título do livro nos remete aos cânticos entoados pelos
devotos aos santos da igreja católica, no decorrer da leitura, nos deparamos
com a possibilidade de serem os cantos
os lugares pelos quais a autora passou e encontrou olhares, experiências e ensinamentos
que orientam uma nova perspectiva para sua própria vida.
Diante dos relatos e das experiências compartilhadas no
decorrer da obra, somos levados a pensar no quanto somos estimulados a conhecer
o mundo, mesmo que pouco ou nada saibamos a respeito da realidade que nos
cerca. Como conhecer o outro se não temos parâmetros sobre nós mesmos?
Livros como Outros
Cantos nos mostram a importância do conhecimento de si mesmo, para o
fortalecimento da identidade nacional, mas, sobretudo, a nossa, enquanto
indivíduos. Precisamos desacelerar, ser pacientes para explorar e conhecer
sobre nós mesmos, o que inclui a cultura do sertão nordestino que está tão
perto e ao mesmo tão longe do nosso cotidiano.
Não quero mais correria, pressa, velocidade.... Ultimamente ando irritadiça e exausta, resisto, mas sou sempre arrastada pela pressa dos outros desde que a gente passou a viver, se mover, se informar, pensar e se comunicar com o máximo de velocidade possível segundo os diários e ruidosos lançamentos de novas geringonças eletrônicas, prometendo cada vez mais velocidade. Não é só o fast-food no estômago, é o fast-food no cérebro: fast-news, fast-thinking, fast-talking, fast-answering, fast-reading. Parece um complô para me obrigar a ser cada vez mais fast, em tudo, a ser avaliada e a me avaliar pela minha rapidez de resposta e de atualização. Ave! E quem pode, assim, continuar a ser gente, ter juízo e saúde? Rapidez obrigatória não combina com reflexão, raciocínio complexo, construção de argumentos fundamentados, avaliação crítica e honesta do argumento alheio, recuperação da memória, verificação conscienciosa das informações recebidas, pensar e julgar com ideias e valores coerentes e abrangentes. Sem isso, não é possível o debate honesto e profundo de coisa nenhuma, a intolerância e a violência se espalham por aí. Afinal, desde sempre o argumento mais rápido em qualquer disputa parece ter sido a força, o golpe, a violência, desde o tacape até o drone bombardeio.
Vale muito a leitura!
Éli, depois de assistir o seu vídeo leio o que escreve imaginando a sua voz!haha Coisa linda! E que livro incrível. Estou precisando de mais leituras assim, de autoconhecimento. Amei o post!
ResponderExcluirBeijocas ♡
Mari, este livro é incrível, mesmo! Um dos mais intensos que li neste ano! ♡ A associação da voz ao texto nos aproxima ainda mais, né?! Rs Que bom que gostou do texto! Ado rei sua visita! Venha sempre! =***
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