01 setembro 2017

Outros Cantos


Um livro com 105 páginas, mas de uma profundidade capaz de tirar o folego do leitor, na medida em que o remete a reflexões sobre identidade e cultura, individual e coletiva. Este é Outros Cantos, de Maria Valéria Rezente, publicado em 2016 pela editora Objetiva, e escolhido para a leitura do mês de agosto do #leiamulheresnatal, que teve encontro realizado no dia 26, na Livraria Saraiva.

O texto é dividido em três partes que representam a sequência das memórias da autora, revividas durante uma viagem de ônibus para a cidade do sertão nordestino, na qual tinha vivido 40 anos antes.

À medida que o carro avançava mais alguns quilômetros para perto da cidade de Olho D’Água, a narradora relembra os meses que viveu naquele lugar, ainda na década de 1970, para atuar como professora do Mobral, durante o regime militar no Brasil.

Enquanto a infraestrutura básica para as aulas e o contrato firmado com a Prefeitura não se concretizavam, ela passou a integrar a comunidade local para conhecer e se familiarizar com os hábitos e expectativas daqueles que, num futuro breve, se tornariam seus alunos.

A convivência relevou a ela muito mais do que os desafios a serem enfrentados para despertar o interesse dos moradores pela alfabetização. A realidade de luta diária pela sobrevivência se revelou mais dura do que o imaginado, ao mesmo tempo em que revelou outros significados, como o da resiliência daquelas pessoas diante de tantas dificuldades, em especial das mulheres que viam os homens partir em busca de condições melhores de vida e oportunidades de trabalho, deixando para trás as famílias unidas pela esperança do retorno deles, algum dia.

A união entre os moradores era fortalecida pela cultura pastoril e pela devoção à Nossa Senhora do Ó e a São José. O hábito da reza e dos cantos, muitas vezes sem significado para a narradora, tornaram-se essencial para aquela que também acabou encontrando na fé respostas para a construção da paciência, tão bem cultivada por aqueles que, num primeiro momento, pareciam ter uma visão tão limitada do mundo, mas com o passar dos dias revelaram que não é bem assim.

Maior que os duros fatos, incontornáveis, só a força dos sonhos e da fantasia, do assombro e dos encantados a puxar a vida para a frente, dia após dia. Era disso que lhes interessava falar...


Quarenta anos depois, a autora revela que naqueles meses vividos em Olho D’Água, compreendeu na prática os ensinamentos do educador Paulo Freire, sobre a importância da inclusão do ambiente no qual os educandos estão inseridos para dar significado aos novos conhecimentos que se pretende apresentar.

Mais do que isso, a autora relembra que a simplicidade e a falta de conhecimento das letras, não tornam as pessoas menos inteligentes e incapazes de perceber a realidade e que o cotidiano mostra o contrário disso. Os ensinamentos ali aprendidos foram levados para a vida e comparados com as experiências de quem visitou três continentes em quatro décadas, mas queria novamente estar ali, mesmo sabendo que a realidade a ser encontrada seria outra, assim como os significados, mas não menos dura.

Rio-me para dentro, penso em como ganha novos sentidos e permanece autônoma na memória uma estrofe apartada de seu poema original. De quantos farrapos, recolhidos assim em qualquer caminho, se alimenta nossa imaginação? Decerto minha vida tinha ganhado novo e renitente sentido a partir daquele retalho vivido entre gentes e cactos esquálidos.


Em relação aos significados, se num primeiro momento somos levados a pensar que o título do livro nos remete aos cânticos entoados pelos devotos aos santos da igreja católica, no decorrer da leitura, nos deparamos com a possibilidade de serem os cantos os lugares pelos quais a autora passou e encontrou olhares, experiências e ensinamentos que orientam uma nova perspectiva para sua própria vida.

Diante dos relatos e das experiências compartilhadas no decorrer da obra, somos levados a pensar no quanto somos estimulados a conhecer o mundo, mesmo que pouco ou nada saibamos a respeito da realidade que nos cerca. Como conhecer o outro se não temos parâmetros sobre nós mesmos?

Livros como Outros Cantos nos mostram a importância do conhecimento de si mesmo, para o fortalecimento da identidade nacional, mas, sobretudo, a nossa, enquanto indivíduos. Precisamos desacelerar, ser pacientes para explorar e conhecer sobre nós mesmos, o que inclui a cultura do sertão nordestino que está tão perto e ao mesmo tão longe do nosso cotidiano.

Não quero mais correria, pressa, velocidade.... Ultimamente ando irritadiça e exausta, resisto, mas sou sempre arrastada pela pressa dos outros desde que a gente passou a viver, se mover, se informar, pensar e se comunicar com o máximo de velocidade possível segundo os diários e ruidosos lançamentos de novas geringonças eletrônicas, prometendo cada vez mais velocidade. Não é só o fast-food no estômago, é o fast-food no cérebro: fast-news, fast-thinking, fast-talking, fast-answering, fast-reading. Parece um complô para me obrigar a ser cada vez mais fast, em tudo, a ser avaliada e a me avaliar pela minha rapidez de resposta e de atualização. Ave! E quem pode, assim, continuar a ser gente, ter juízo e saúde? Rapidez obrigatória não combina com reflexão, raciocínio complexo, construção de argumentos fundamentados, avaliação crítica e honesta do argumento alheio, recuperação da memória, verificação conscienciosa das informações recebidas, pensar e julgar com ideias e valores coerentes e abrangentes. Sem isso, não é possível o debate honesto e profundo de coisa nenhuma, a intolerância e a violência se espalham por aí. Afinal, desde sempre o argumento mais rápido em qualquer disputa parece ter sido a força, o golpe, a violência, desde o tacape até o drone bombardeio.


Vale muito a leitura!

2 comentários:

  1. Éli, depois de assistir o seu vídeo leio o que escreve imaginando a sua voz!haha Coisa linda! E que livro incrível. Estou precisando de mais leituras assim, de autoconhecimento. Amei o post!
    Beijocas ♡

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    1. Mari, este livro é incrível, mesmo! Um dos mais intensos que li neste ano! ♡ A associação da voz ao texto nos aproxima ainda mais, né?! Rs Que bom que gostou do texto! Ado rei sua visita! Venha sempre! =***

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