Com um sarcasmo envolvente, Tolstói apresenta ao leitor a
Parte III do romance Anna Kariênina, escrito no final do século XIX, uma
dinâmica que a diferencia das duas partes anteriores, na medida em que nos
coloca em contato com a rotina e os pensamentos mais íntimos de Liévin, em seu
habitat natural: o campo.
Ao revelar o modo de vida, as atividades e as relações que compunham
o cotidiano dos proprietários de terra na Rússia pré-socialista, Tolstói no
remete a reflexões que abordam não somente o uso da terra, mas as perspectivas ideológicas
que embasam a escolha por determinada forma do fazer produtivo.
Enquanto Liévin revela sua propensão ao pensamento liberal,
um dos irmãos dele, Serguei, revela tendências de esquerda ao destacar a
importância do envolvimento do irmão mais novo nos debates acerca dos
investimentos sociais e melhorias a serem feitos na comunidade, em benefício
dos trabalhadores.
Porém, essa postura vai de encontro às ideias de Liévin que
vê na satisfação pessoal o objetivo máximo das ações humanas. Mesmo assim, é
ele quem se junta aos mujiques que trabalham em suas terras para aprender como
desenvolvem as atividades, numa clara tentativa de mostrar aos trabalhadores que se importa com o fazer produtivo e que as orientações que dá a eles – que optam por não as
seguir - visam à máxima produtividade
das terras.
Há um limite para tudo. Está muito bem ser um homem original, sincero e não estimar a falsidade, sei disso tudo; mas o que você está dizendo, ou não tem sentido algum, ou tem um sentido muito ruim. Como pode achar sem importância que esse povo do campo, que você ama, como afirma… “Jamais afirmei tal coisa”, pensou Konstantin Liévin. – … morra sem receber nenhuma assistência? Camponesas grosseiras deixam as crianças morrerem à toa enquanto os camponeses se atolam na ignorância e se submetem ao poder de qualquer escrivão, e você tem ao alcance das mãos um meio de ajudá-los, mas não ajuda, porque, na sua opinião, isso não é importante.
Se as discussões entre Liévin e Serguei chegam a aborrecer o
caçula, o mesmo não acontece quando recebe a visita do amigo Oblonsky que
aproveita a proximidade para pedir ao amigo que auxilie a mulher, Dolly, que
deixou Moscou para morar em uma propriedade próxima a dele com os filhos, para
reduzir os custos da família. Enquanto isso, Oblonsky passava uma temporada em
São Petersburgo.
Por mais que Stiepan Arcáditch se esforçasse em ser um pai e um marido zeloso, jamais conseguia lembrar que tinha esposa e filhos. Seus gostos eram os de um homem solteiro, e só a eles se atinha.
A presença de Dolly no campo renova o ânimo de Liévin até o
momento que este descobre que Kitty passará um período com a irmã. Liévin acreditava que o tempo e as atividades físicas ao lado dos mujiques, que
tanto o faziam bem, tinham sido suficientes para calar o sentimento que nutria
por Kitty e o atormentava. Mas isso não aconteceu.
Compreendeu que seu amor não se extinguira.
A simples menção à notícia o fez perceber que não estava
pronto para conviver com ela, que já se recuperara do desgaste sofrido após a rejeição
que Vrónski a submetera, depois dela ter, por sua vez, recusado o pedido de
casamento de Liévin. Esta negativa, segundo Dolly, não representou o sentimento da
irmã, mas sim as pressões as quais fora submetida, especialmente da mãe.
Após passar um período com o irmão Nikolai, Liévin decide
passar uma temporada na casa de um amigo, caçando, para evitar o contato com
Kitty. Liévin lamenta o estado de saúde do irmão que, cada vez mais debilitado,
opta por não seguir tratamentos, mas sim viver plenamente a vida ao mesmo tempo
em que percebe seu corpo perdendo a vitalidade.
Era preciso, de algum modo, viver sua vida, enquanto a morte não vinha. Para ele, a escuridão recobria tudo; mas, graças precisamente a essa escuridão, Liévin sentia que o único fio condutor através das trevas era o seu projeto e ele se agarrava e se aferrava a isso com suas últimas forças.
Enquanto todos esses eventos marcam a vida de Liévin, Anna
Kariênina, Vrónski e Aleksiei Aleksándrovitch experimentam os dilemas a serem
enfrentados após a revelação dela ao marido, do romance que mantém com Vrónski.
A decisão de Aleksiei Aleksándrovitch de sustentar a relação e as aparências corrobora os receios de Anna e Vrónski em relação às condições materiais para
se manterem na alta sociedade, que lhes faltam, assim como a preocupação com a manutenção
da guarda de Serioja.
Mesmo assim, Anna Kariênina oscila entre os momentos de autossuficiência,
dissimulação e desespero, para não transparecer fraqueza, o que só se permite
estando sozinha, em momentos nos quais não consegue conter as lágrimas.
Não era a necessidade de dissimular, tampouco a finalidade da dissimulação, mas sim o próprio processo de dissimulação que a empolgava.
Nesta terceira parte da obra, Tolstói imprime um ritmo mais
intenso ao texto, ao entrelaçar temas diversos e núcleos de personagens que se
contradizem, ao mesmo tempo em que se complementam. É justamente por
iniciativas como esta que este é um livro que prende a atenção do leitor linha
após linha. Leitura que segue!
Nenhum comentário:
Postar um comentário