02 agosto 2017

A guerra não tem rosto de mulher


Se aceitarmos o fato que a leitura de um livro nada mais é do que o contato com a perspectiva de determinado autor a respeito de fatos analisados por ele, é possível constatar que não existem verdades absolutas. Mais do que isso, que apenas partes da verdade global são aceitas, difundidas, contadas e cristalizadas como a versão oficial.

No caso das guerras, revoluções e conflitos das mais variadas naturezas, essa realidade nos distancia de personagens e fatos capazes de transformar nossa compreensão sobre tais eventos.

As versões mais conhecidas da Segunda Guerra Mundial são um exemplo disso, tendo em vista que pouco se fala das perspectivas russas, assim como a prevalência dada ao antagonismo entre os países integrantes do Eixo e dos Aliados que culminou com a derrota da Alemanha Nazista.

Dentre as várias versões, pouco se sabe a respeito da participação das mulheres no conflito, geralmente narrado com base nos atos heroicos dos homens integrantes das forças armadas ou não dos dois grupos.

Mas como a história se encarrega de trazer à tona novos fatos que revelam cada vez mais sobre nós mesmos, pouco a pouco chegam até nós os relatos crus da maciça participação das mulheres na Segunda Guerra Mundial, como integrantes do exército russo, em posições como cozinheiras, telefonistas, médicas, enfermeiras, pilotos, fuzileiras e, sim, francoatiradoras.

Em um trabalho que durou cerca de trinta anos, a jornalista Svetlana Aleksiévitch compilou relatos dessas mulheres e publicou no livro A guerra não tem rosto de mulher. Nas pouco mais de 300 páginas da obra editada pela Companhia das Letras, a autora premiada com o Nobel de Literatura de 2015, dá voz àquelas que foram para a guerra, defenderam a pátria nas mais diversas posições, mas que tiveram suas vozes caladas ao longo da história.

O livro é construído a partir da oralidade transcrita e, a cada depoimento, somos colocados diante da realidade de guerra, sem glamour algum, mas com muitos atos de heroísmo e outros nem tão heroicos assim, porém praticamos por homens e mulheres que foram para o front ainda na adolescência.

Os problemas devido à falta de treinamento adequado, preconceitos e dificuldades -  desde a vestimenta até a falta de estrutura para o atendimento de questões fisiológicas - enfrentados pelo simples fato de serem mulheres, assim como a necessidade de adequação a uma postura pertinente ao novo ambiente, fez com que essas mulheres, escondidas sob uniformes, botas, armas e muito sangue aprendessem a equilibrar a sobriedade com as peculiaridades inerentes ao gênero feminino.

Você me pergunta: o que era mais terrível na guerra? E espera de mim.... Eu sei o que você espera.... Está pensando que eu vou responder: o mais terrível na guerra era a morte. Morrer.
É isso mesmo? Conheço vocês, então... Esses truquezinhos de jornalistas... Ha-ha-ha-ha... Por que não está rindo? Hein?
Pois eu vou dizer uma coisa... O mais terrível na guerra, para mim, era usar cueca. Isso sim era um horror. E para mim era um pouco... Como me expressar...? Bem, em primeiro lugar é muito feito... Você está na guerra, se preparando para morrer pela pátria e usando cueca. Quer dizer, com uma aparência ridícula. Absurda. Naquela época se usavam cuecas compridas. Largas. Feitas de cetim. Havia dez garotas na nossa trincheira, todas de cueca. Ah, meu Deus! No inverno e no verão. Durante quatro anos.
Cruzamos a fronteira soviética... Como disse nosso comissário nas aulas de política, estávamos terminando de matar a fera em sua própria toca. Perto da primeira aldeia polonesa nos mandaram trocar de roupa, entregaram nossa nova farda, e... E?! E?! E?! Pela primeira vez mandaram calcinhas e sutiãs. Pela primeira vez em toda a guerra. Ha-ha-ha... Bem, dá para entender... Vimos roupas de baixo femininas normais...
Por que você não está rindo? Está chorando... Mas por quê?
                                                                                       Lola Akhmétova, soldado, fuzileira

Os detalhes dos relatos do antes, durante e do depois da guerra revelam que, de fato, existem duas guerras, a dos homens e a das mulheres, mesmo que lá, diante do inimigo, prevalecesse apenas a parceria e a luta pela sobrevivência.

Além de nos revelar, sem subterfúgios, a rotina e a realidade dos campos de batalha, Svetlana Aleksiévitch nos coloca diante da guerra pela sobrevivência travada por essas mesmas mulheres combatentes que, apesar de condecoradas, foram – e ainda são – marginalizadas da história e da vida, mas que ainda lutam para vencer os próprios medos e viver.

Depois da guerra, passei muito tempo com medo do céu, até de levantar a cabeça para o céu. Tinha medo de ver terra arada. E as gralhas já estavam passando por ela tranquilamente. Os pássaros logo se esqueceram da guerra...

Não é sem razão que o livro A guerra não tem rosto de mulher demorou tanto para ser publicado. Enfrentar a censura e os padrões sociais previamente estabelecidos retardou a divulgação desses fatos que dizem muito sobre nossa sociedade, no presente e no passado.

Este é o tipo de leitura dura, incômoda, mas necessária!
#leiamulheres
O livro da jornalista Svetlana Aleksiévitch a leitura do mês de julho do grupo #leiamulheresnatal . A obra foi discutida em encontro realizado no Museu Câmara Cascudo, em Natal/RN, o que deu ainda mais vida ao intenso conteúdo que a compõe.
Para o mês de agosto, o livro definido pelo grupo foi “Outros Cantos”, de Maria Valéria Rezende, vencedora do Prêmio Jabuti 2015 de melhor romance.

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