11 setembro 2017

A Cerimônia do Adeus | Parte II


A leitura do livro A Cerimônia do Adeus, de Simone de Beauvoir, é uma demonstração de como algo que começou de forma despretensiosa, pode se tornar uma experiência marcada por surpresas, muita emoção e intensas reflexões sobre os temas abordados, como a liberdade, a vida e a morte.

Na primeira parte do livro que, nesta edição publicada pela Editora Nova Fronteira - na coleção “Clássicos Para Todos” - conta com 573 páginas, o leitor tem a oportunidade de acompanhar os dez últimos anos de vida de Jean-Paul Sartre, pela perspectiva de Simone de Beauvoir, a partir dos registros feitos pela autora em diários.

Na segunda parte, que representa a maior parte da obra, ao leitor é entregue um extenso diálogo entre o casal de escritores e filósofos que, apesar de ter sido escrito por Simone de Beauvoir, pode ser considerado uma autobiografia de Sartre que, entre agosto e setembro de 1974, repassa sua vida, da infância à perspectiva iminente de morte.

Em formato de entrevista, o texto nos coloca em contato com a análise que Sartre faz sobre diversas etapas e fatos da própria vida e obra, a partir do ponto de vista daquele momento de um homem aos 69 anos, praticamente cego, com mobilidade limitada, além de outros problemas de saúde.

Guiado por Simone de Beauvoir, Sartre revela o ser por trás do intelectual. Uma pessoa complexada pelo porte físico -  de apenas 1,60 m-, tendência a engordar, feio e vesgo, segundo ele mesmo. Mimado, em consequência da criação da mãe e do avô, compensou os complexos em decorrência da aparência, com uma personalidade egocêntrica, arrogante e machista.

Sim, Sartre foi machista em boa parte da vida! E essa não é a única contradição do homem que teve como companheira, durante 45 anos da vida, uma das mulheres mais representativas do movimento feminista.

Na medida em que a leitura avança e acompanhamos as análises feitas pelo próprio escritor a respeito de suas escolhas, posturas adotadas, romances e teorias desenvolvidos, somos levados a refletir sobre o quanto dele mesmo está impregnado em toda sua obra, fortemente marcada pela busca e entendimento da liberdade do ser.

As contradições características do ser-humano não seriam, então, uma consequência da busca pela concretização da vivência em liberdade? Ou, como o próprio Sartre nos aponta, não seriam estas contradições resultado das contingências da vida, em essência, e em constante construção?

A verdadeira relação consigo é aquilo que somos e não com aquilo que construímos vagamente semelhante a nós.


A subjetividade com a qual trata os mais variados acontecimentos e conceitos leva Sartre à construção e reconstrução de teorias e formas de ver e viver a vida que, para ele estão representadas em nossa trajetória.

A dele, segundo relata, foi vivenciada com a máxima intensidade, nos relacionamentos amorosos, sexuais, políticos, literários, filosóficos, artísticos. Em todas as oportunidades que tinha, buscava dar o máximo de si, na escrita – que considerava o seu fazer da vida -, na entrega de si mesmo ao que considerava os prazeres do mundo: beber, comer, compartilhar conhecimento, viajar, ser. E para poder ser, Sartre abusou do álcool, do cigarro e de anfetaminas, das quais fez uso durante vinte anos.

O que queria dizer é que somos responsáveis por nós mesmos, ainda que os atos sejam provocados por algo exterior a nós...


Se a conversa entre Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir é capaz de causar repulsa ao homem por trás do autor, é possível perceber o quanto a admiração que a escritora e orientadora da entrevista nutria tanto pelo ser-humano quanto pelo literato e filósofo Sartre. A interferência dela também guia o leitor à construção de um olhar mais ameno e compassivo sobre ele.

É pelo olhar dela que somos levados a relativizar a dureza da análise que Sartre faz de si mesmo, assim como passamos a separar o homem de da obra, pois a relevância dos escritos de Sartre é indiscutível.

Os textos do autor, que tanto se preocupou em separar a literatura da filosofia, tiveram (e ainda têm) impacto político, social, filosófico, literário e, porque não dizer, individual, e ultrapassa a barreira do Século XX, como intencionava o autor, que via na morte a possibilidade de consagração do escritor. No caso dele, a marca dos 50 anos já foi ultrapassada. A morte, que ele não temia, não representou seu fim, tendo em vista a consagração da obra produzida por ele.

Descreveria então minha vida, em direção ao fim, como uma série de linhas paralelas e retas; seriam meus conhecimentos, minhas ações, meus pertences, e isso representaria precisamente um universo em que o futuro está presente, em que ele me caracteriza tanto quanto o presente, em que ele me caracteriza tanto quanto o presente. E por baixo disso indicaria em pontilhado o que ocorre a cada instante e que não tem muito futuro a não ser meu fim: esta vida real de cada instante, as doenças que podem alterar minhas vísceras, as faltas de conhecimentos que tive durante toda a minha vida, mas que podem ainda agravar-se atualmente etc. É minha morte, mas represento-a em pontilhado. E, por cima, coloco esses conhecimentos e essas ações que implicam o futuro.


E já que estamos falando em futuro e na liberdade de escolha, os livros que compõem a trilogia Os Caminhos da LiberdadeA Idade da Razão, Sursis e Com a Morte na Alma -  são leituras essenciais, escritos durante e após a Segunda Guerra Mundial, evento do qual Sartre participou e teve grande influência nas transformações pelas quais passou.

Em relação ao livro A Náusea, primeira grande obra do autor, em A Cerimônia do Adeus, Sartre revê os posicionamentos publicados nela e destaca que a teoria ali apresentada, já não o representa. Mesmo assim, a crítica considera que este livro ´´e essencial para quem deseja conhecer a evolução do pensamento de Jean-Paul Sartre.

Sem dúvida, A Cerimônia do Adeus é uma obra que merece ser lida e relida, pois traz muitos fatos históricos e personagens que, de uma forma ou de outra, influenciaram e/ou foram influenciados por Sartre, mas que, sobretudo, dizem respeito a vida de cada um de nós, na medida em que nos remete a reflexões sobre a construção de nós mesmos enquanto indivíduos e, ao mesmo tempo, nosso papel (ou papeis) em relação ao mundo.

Livros que nos envolvem em experiências existenciais não podem ser excluídos da lista de leitura!😊

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