30 junho 2017

O Lustre


O pensamento é uma das coisas mais intrigantes do ser humano, seja o nosso ou, especialmente, o do outro. Compreender como podemos passar de um assunto a outro que, num primeiro momento, não têm relação, nos ajuda a entender um pouco mais a respeito de nós mesmos. Esta viagem nos guia por caminhos que buscam encontrar as peças que preenchem as lacunas de nossa própria existência, mas nem sempre são facilmente localizadas.

E se é a partir da observação dos nossos pensamentos e sentimentos que conseguimos nos apropriar minimamente de nós mesmos, o desafio de compreender o outro se coloca como missão tão complexa quanto impossível de ser cumprida.

Neste sentido, quando somos colocados diante de obras como “O Lustre”, de Clarice Lispector, temos a chance de perceber que o fluxo de memória do outro nos aproxima, nos torna iguais. Porém, ao mesmo tempo nos revela como incógnitas cada vez mais difíceis de ser desvendadas pelo outro e, se não estivermos atentos, por nós mesmos.

Neste livro, que é o segundo publicado, Lispector nos permite acompanhar em apenas um capítulo que compõe as 267 páginas da edição publicada pela Editora Nova Fronteira, na coleção Saraiva de Bolso, o processo de autoconhecimento de Virgínia, a partir do relato em fluxo de memória de fatos, personagens e relações desde a infância até a vida adulta.

A forma esses elementos se entrelaçam e a fazem reviver momentos e optar por determinadas posturas é compreensível e/ou questionável porque temos a oportunidade de ouvir os pensamentos e lembranças de Virgínia e identificar alguns dos gatilhos que a levam a passear por determinadas recordações.

A intensa relação de amor, medo e admiração pelo irmão, a indiferença em relação à mãe e a irmã mais velha, o distanciamento do pai. Os encontros e desencontros que a vida proporciona e como esses e suas consequências são digeridos (ou não!) no presente e, quem sabe, no futuro. Mais do que isso, como todas essas relações a formam e influenciam são elementos essenciais no desenvolvimento do pensamento de Virgínia a respeito de si mesma.

Era uma luta despercebida que no entanto os ligava num mesmo meio de atração, desentendimento, repulsa e cumplicidade. Apesar de tudo ele lhe ensinara muito.


Ela, que não consegue se encaixar em padrões, busca na simplicidade e honestidade consigo mesma o caminho para a felicidade ou para a manutenção de uma vida que se aproxime o máximo possível daquilo que ela entende como tal. Afinal, o que é ser feliz? Por que temos a necessidade de nos encaixar em modelos previamente estabelecidos, por e para quem mesmo?

Seria tão mais fácil ser melhor para si mesma; as pessoas se preveniam para ter companhia durante todos os instantes da vida, mesmo Daniel; e ela, misteriosamente desprendida, conseguira ficar só.


Distante de apresentar uma narrativa linear e tão intensa quanto a revelação dos mais íntimos pensamentos pode ser, Clarice Lispector nos permite acompanhar as diversas etapas da construção de si mesma pelas quais Virgínia passa até que, finalmente, consegue responder a alguns de seus próprios questionamentos, que também são nossos. Porém, tais respostas não significam o fim da busca. Muito pelo contrário, revelam a necessidade de reordenamento de condutas, valores e elaboração de novas perguntas para um eterno recomeçar.

Intimamente fora ela ainda quem ousara levar-se além do que poderia, novamente fora ela quem criara o momento de dor, temia-se surpreendida pela frieza com que se conduzia a viver, e como se arrependia, como se arrependia! Não ousar, não ousar, ter menos coragem e menos forca do que tinha, isso, isso! Pensava baixo dando-se animo (...).


Sem dúvida uma obra que vale a leitura e diversas releituras, tamanha a intensidade com a qual o texto é capaz de envolver o leitor!

Nenhum comentário:

Postar um comentário