Há alguns dias ouvi no rádio um comentário do Mário Sérgio
Cortella no qual ele afirmava que “a boa leitura, como a boa arte, ela sempre
emociona”. Sim, a boa leitura tem a capacidade de nos emocionar a partir do
desenvolvimento do enredo que o autor nos apresenta em sua construção textual. O
leitor é colocado diante de personagens dos quais se torna íntimo, na medida em
que as palavras revelam os seres e seus respectivos conflitos e dilemas.
Porém, há livros que conseguem ir além, ao nos proporcionar experiências
sensoriais que potencializam esta emoção a um ponto que chega a ser difícil
descrever para quem não se dispôs a vivenciá-la. Em sua busca pelo tempo
perdido, o escritor francês Marcel Proust nos convida a acompanha-lo em uma
viagem por suas memórias não apenas como testemunhas, mas como partícipes desta
experiência junto ao seu próprio eu, leitor.
“Em busca do tempo perdido” é uma obra composta por sete
volumes. O primeiro, intitulado “No Caminho de Swann”, foi publicado em 1948
com tradução de Mario Quintana e conta com 560 páginas. Nele, Proust constrói o
texto de forma a nos fazer acompanhar o raciocínio e os pensamentos do narrador,
Marcel, que, como em uma conversa, é capaz de transitar pelos mais diversos
temas sem que a conexão entre eles seja quebrada ou prejudicada.
Por se tratar de um livro de memórias, os parágrafos não são
organizados de maneira linear. Muito pelo contrário. São longos, porém, de uma
fluidez que torna a pontuação das frases e a acentuação de extrema relevância
para a compreensão das ideias. Mas, por mais que pareça, a peculiaridade do
texto não o torna cansativo, apesar de requerer mais atenção do que a maioria
dos livros, tendo em vista a dinâmica do pensamento do narrador.
Aliás, a descrição do que ele, narrador, pensa, vê e sente
nos permite sentir, ver e pensar a realidade que nos é apresentada, ao mesmo
tempo em que somos levados a um processo de autoconhecimento. A escrita de
Proust é tão viva que as sensações e percepções são vivenciadas de forma
intensa pelo leitor, capaz, entre outras coisas, de perceber o amadurecimento
das personagens a partir das descrições dos ambientes.
Invadira-me um prazer delicioso, isolado, sem noção de sua causa. Esse prazer logo me tornara indiferente às vicissitudes da vida, inofensivos seus desastres, ilusória sua brevidade, enchendo-me de uma preciosa essência: ou, antes, essa essência não estava em mim, era eu mesmo. Cessava de me sentir medíocre, contingente, mortal. De onde me teria vindo aquela poderosa alegria?
O enredo de “No Caminho de Swann” é uma viagem no tempo feita
pelo narrador, a partir da lembrança que a degustação de uma xicara de chá o
remete. Esta trajetória começa com as lembranças da infância, marcada pelo
convívio com familiares e amigos, seus respectivos relacionamentos, hábitos,
cultura, bem como os ambientes frequentados por eles, na França do século XIX,
e a influência de todos esses elementos na formação do narrador.
Mesmo sendo uma obra que requer um pouco mais de atenção, a
leitura do primeiro volume de “Em Busca do Tempo Perdido” é deliciosamente
envolvente. Uma verdadeira experiência de pensamentos, sentidos e sentimentos.
Não há talvez uma pessoa, por maior que seja sua virtude, que a complexidade das circunstâncias não possa levar u dia a viver na familiaridade do vício que mais formalmente condena - sem que aliás o reconheça de todo sob o disfarce de fatos particulares de que esse vício se reveste para entrar em contato com ela e fazê-la sofrer: palavras estranhas, uma atitude inexplicável, certa noite, de uma criatura a quem de resto tem tantos motivos para querer bem.
Este é o tipo de obra para ser apreciada sem pressa, mas de
maneira contínua. Por isso, que venha o segundo volume, “À Sombra das Raparigas
em Flor”, pois esta é uma leitura que vale cada página!
Saber nem sempre permite evitar. Mas as coisas que sabemos, temo-las, se não entre as mãos, pelo menos no pensamento, onde as dispomos à nossa vontade, o que nos dá a ilusão de uma espécie de domínio sobre elas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário