09 junho 2017

Orlando: Uma biografia


Poucas coisas nesta vida são tão marcantes quanto aquela fluida conversa que se desenvolve num final de tarde despretensioso, sem deixar que olhos escapem uns dos outros.

Em encontros assim, que parecem fazer com que o outro adentre nossa alma através dos nossos olhos a caminho do eu interior, tornam inesquecíveis as palavras ditas, os gestos reveladores, os movimentos de aproximação, as sensações e percepções.

Relatos e registros destes momentos permitem ao interlocutor um envolvimento com as cenas e personagens descritas que tornam aquele encontro tão seu quanto daquele que o narra. É exatamente isso que Virgínia Woolf faz com o leitor de “Orlando: Uma biografia”.

Com um texto desenvolvido de acordo com o fluxo do pensamento, a escritora inglesa nos conta a história de Orlando, um nobre também inglês que sofre uma desilusão amorosa e, depois disso, foge de toda e qualquer possibilidade de envolvimento com outra mulher que, por alguma razão, possa magoá-lo.

Orlando resolve desbravar o mundo a serviço da realeza para fugir da possibilidade de um novo amor. Até que aos 30 anos, Orlando se transforma em uma mulher e passa a refletir sobre a forma como sempre tratou o, até então, sexo oposto e as limitações e desafios que aquela nova constituição o fazem vivenciar.

Enquanto descreve o cotidiano de Orlando, Virgínia Woolf nos leva a refletir a respeito de situações contemporâneas similares às descritas por ela, na Inglaterra do início do século XX, assim como com as questões comportamentais que, por natureza, são atemporais e universais.

Orlando expressa sua dor por meio da escrita e do isolamento. Manteve contato com escritores relevantes daquela época, como Alexander Pope, mas nunca escondeu o desconforto com determinadas posturas por vezes incoerentes entre aquilo que os grandes nomes de sua época escreviam e viviam.

Mesmo depois de ter se transformado em uma mulher, Orlando não deixou de circular pelas ruas da cidade vestida como homem. Gostava da experiência de viver nos dois mundos, mas sempre fugindo de ambos, pois o que realmente buscava era responder aos questionamentos: o que é viver e o que é amor?

E, de fato, não se pode negar que os mais bem-sucedidos adeptos da arte de viver – pessoas muitas vezes desconhecidas, aliás – conseguem de alguma maneira sincronizar os sessenta ou setenta tempos diferentes que batem simultaneamente em todo sistema humano normal; de modo que, quando soam onze horas, todos os tempos batem em uníssono, e o presente não é nem um violento rompimento nem um esquecimento completo do passado.

No decorrer das páginas, o leitor é colocado em contado com os mais profundos pensamentos e sentimentos da personagem central, como se a descrição dos fatos e os diálogos vivenciados fosse como  aquela experiência do olho no olho, mas com quem passa cada uma das páginas.

Orlando é intensa em suas lutas e reflexões, questiona a posição da mulher naquela sociedade machista, subjugada e destinada às relações superficiais. Mas não ela. Orlando se casa, tem um filho, mas segue sendo ela, percebe e não negligencia as próprias necessidades. Desperta paixões.

O nervo que controla a pena enrola-se em cada fibra do nosso ser, trespassa o coração, perfura o fígado. Embora o centro da sua inquietação parecesse ser a mão esquerda, sentia-se completamente envenenada, e foi obrigada, por fim, a considerar o mais desesperado dos remédios, que era ceder de modo completo e submisso ao espírito da época e arrumar um marido.

A cronologia da história, que é dividida em seis capítulos, é contada como se a vida Orlando se passasse em 300 anos de memórias reveladas pelo biógrafo. A intensidade da relação entre biógrafo e biografado nos ajuda a compreender a ideia de que as relações que estabelecemos valem mais por esta intensidade do que pelo tempo cronológico, pois aquela troca de olhares é resultante do encontro de almas e não dos ponteiros de um relógio.

Muito mais do que um texto que discute sexualidade e gênero, “Orlando” é o registro de um desses raros encontros, tendo em vista que o livro é dedicado a V. Sackville-West que era Victoria Mary Sackville-West (1892-1962), poetisa e romancista inglesa, conhecida como Vita Sackville-West, com quem Virgínia Woolf manteve um relacionamento no final da década de 1920.

Em uma das notas desta edição bilíngue da obra publicada pela Landmark (2013), há o registro do filho de Vita, Nigel Nicolson, também é escritor e biógrafo, que afirma ser este livro a “mais longa e mais encantadora carta de amor da literatura”. Não é por acaso que esta é a obra mais aclamada de Virgínia Woolf.

O romance entre Vita e Virgínia teria inspirado a escritora a desenvolver este romance, que teve a concepção registrada em seu diário pessoal, como o registro de momentos e pessoas capazes de marcar a trajetória do outro de maneira significativa.

A obra "Entre os atos" será a próxima obra! Virgínia Woolf não só vale, como deve ser lida!



esses eus de que somos constituídos, um em cima do outro, como pratos empilhados na mão de um garçom, tem outras afeições, simpatias, pequenos códigos e direitos próprios, como quer que se chamem (e para muitas dessas coisas não existe nome), de modo que um só virá se estiver chovendo; outro, só em um quarto com cortinas verdes; outro, se Mrs. Jones não estiver lá; outro, se pudermos prometer-lhe uma taça de vinho – e assim por diante; pois todo mundo pode multiplicar com sua própria experiência as diferentes condições que os seus diferentes “eus” lhe colocam – e algumas são por demais ridículas para que sejam de algum modo mencionadas em letra de fôrma.




#leiamulheres

O romance "Orlando" foi o livro de maio do clube de leitura #leiamulheresnatal que tem como objetivo estimular a difusão de obras escritas por mulheres. O encontro para discussão da obra aconteceu no dia 4 de junho de 2017, na biblioteca do Parque da Cidade. Na oportunidade, as reflexões contemporâneas que o livro proporciona foi a linha condutora da discussão que contou com a participação de homens e mulheres. Excelente iniciativa que se espalha por diversas cidades do Brasil. Em Natal, o próximo encontro está marcado para o dia 25 de junho, na Livraria Saraiva do Midway Mall. 

Sobre a autora:
Virgínia Woolf (1882 – 1941) nasceu em Londres e escreveu, além de romances, inúmeros contos e resenhas para jornais. A partir da morte da mãe, em 1895, Virgínia começou a apresentar os primeiros sinais de depressão, doença que a acompanharia ao longo de sua vida. Figura de proa da sociedade intelectual britânica, participou do grupo de Bloomsbury, círculo de artistas que eram contrários às tradições literárias em voga até então. Sofrendo por conta da depressão, Virgínia se suicidou em um rio próximo à casa onde morava. (Fonte: Nova Fronteira)

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