Poucas coisas nesta vida são tão marcantes quanto aquela
fluida conversa que se desenvolve num final de tarde despretensioso, sem deixar
que olhos escapem uns dos outros.
Em encontros assim, que parecem fazer com que o outro
adentre nossa alma através dos nossos olhos a caminho do eu interior, tornam
inesquecíveis as palavras ditas, os gestos reveladores, os movimentos de aproximação,
as sensações e percepções.
Relatos e registros destes momentos permitem ao interlocutor
um envolvimento com as cenas e personagens descritas que tornam aquele encontro
tão seu quanto daquele que o narra. É exatamente isso que Virgínia Woolf faz
com o leitor de “Orlando: Uma biografia”.
Com um texto desenvolvido de acordo com o fluxo do
pensamento, a escritora inglesa nos conta a história de Orlando, um nobre também
inglês que sofre uma desilusão amorosa e, depois disso, foge de toda e qualquer
possibilidade de envolvimento com outra mulher que, por alguma razão, possa
magoá-lo.
Orlando resolve desbravar o mundo a serviço da realeza para
fugir da possibilidade de um novo amor. Até que aos 30 anos, Orlando se
transforma em uma mulher e passa a refletir sobre a forma como sempre tratou o, até então, sexo oposto e as limitações e desafios que aquela nova constituição o fazem
vivenciar.
Enquanto descreve o cotidiano de Orlando, Virgínia Woolf nos
leva a refletir a respeito de situações contemporâneas similares às descritas
por ela, na Inglaterra do início do século XX, assim como com as questões comportamentais que, por natureza, são atemporais e universais.
Orlando expressa sua dor por meio da escrita e do
isolamento. Manteve contato com escritores relevantes daquela época, como
Alexander Pope, mas nunca escondeu o desconforto com determinadas posturas por
vezes incoerentes entre aquilo que os grandes nomes de sua época escreviam e
viviam.
Mesmo depois de ter se transformado em uma mulher, Orlando não
deixou de circular pelas ruas da cidade vestida como homem. Gostava da experiência
de viver nos dois mundos, mas sempre fugindo de ambos, pois o que realmente
buscava era responder aos questionamentos: o que é viver e o que é amor?
E, de fato, não se pode negar que os mais bem-sucedidos adeptos da arte de viver – pessoas muitas vezes desconhecidas, aliás – conseguem de alguma maneira sincronizar os sessenta ou setenta tempos diferentes que batem simultaneamente em todo sistema humano normal; de modo que, quando soam onze horas, todos os tempos batem em uníssono, e o presente não é nem um violento rompimento nem um esquecimento completo do passado.
No decorrer das páginas, o leitor é colocado em contado com
os mais profundos pensamentos e sentimentos da personagem central, como se a
descrição dos fatos e os diálogos vivenciados fosse como aquela experiência do
olho no olho, mas com quem passa cada uma das páginas.
Orlando é intensa em suas lutas e reflexões, questiona a posição da mulher naquela sociedade machista, subjugada e destinada às relações superficiais. Mas não ela. Orlando se casa, tem um filho, mas segue sendo ela, percebe e não negligencia as próprias necessidades. Desperta paixões.
O nervo que controla a pena enrola-se em cada fibra do nosso ser, trespassa o coração, perfura o fígado. Embora o centro da sua inquietação parecesse ser a mão esquerda, sentia-se completamente envenenada, e foi obrigada, por fim, a considerar o mais desesperado dos remédios, que era ceder de modo completo e submisso ao espírito da época e arrumar um marido.
A cronologia da história, que é dividida em seis capítulos,
é contada como se a vida Orlando se passasse em 300 anos de memórias reveladas
pelo biógrafo. A intensidade da relação entre biógrafo e biografado nos ajuda a
compreender a ideia de que as relações que estabelecemos valem mais por esta intensidade do que pelo tempo cronológico, pois aquela troca de olhares é resultante do encontro de almas e não dos ponteiros de um relógio.
Muito mais do que um texto que discute sexualidade e gênero, “Orlando” é o registro de um desses raros encontros, tendo
em vista que o livro é dedicado a V. Sackville-West que era Victoria Mary
Sackville-West (1892-1962), poetisa e romancista inglesa, conhecida como Vita Sackville-West,
com quem Virgínia Woolf manteve um relacionamento no final da década de 1920.
Em uma das notas desta edição bilíngue da obra publicada
pela Landmark (2013), há o registro do filho de Vita, Nigel Nicolson, também é
escritor e biógrafo, que afirma ser este livro a “mais longa e mais encantadora
carta de amor da literatura”. Não é por acaso que esta é a obra mais aclamada de Virgínia Woolf.
O romance entre Vita e Virgínia teria inspirado a escritora
a desenvolver este romance, que teve a concepção registrada em seu diário
pessoal, como o registro de momentos e pessoas capazes de marcar a trajetória do outro
de maneira significativa.
A obra "Entre os atos" será a próxima obra! Virgínia Woolf não só vale, como deve ser lida!
esses eus de que somos constituídos, um em cima do outro, como pratos empilhados na mão de um garçom, tem outras afeições, simpatias, pequenos códigos e direitos próprios, como quer que se chamem (e para muitas dessas coisas não existe nome), de modo que um só virá se estiver chovendo; outro, só em um quarto com cortinas verdes; outro, se Mrs. Jones não estiver lá; outro, se pudermos prometer-lhe uma taça de vinho – e assim por diante; pois todo mundo pode multiplicar com sua própria experiência as diferentes condições que os seus diferentes “eus” lhe colocam – e algumas são por demais ridículas para que sejam de algum modo mencionadas em letra de fôrma.
#leiamulheres
O romance "Orlando" foi o livro de maio do clube de leitura
#leiamulheresnatal que tem como objetivo estimular a difusão de obras escritas por mulheres. O encontro para discussão da obra aconteceu no dia 4 de junho
de 2017, na biblioteca do Parque da Cidade. Na oportunidade, as reflexões contemporâneas que o livro proporciona foi a linha condutora da discussão que contou
com a participação de homens e mulheres. Excelente iniciativa que se espalha
por diversas cidades do Brasil. Em Natal, o próximo encontro está marcado para o dia 25 de junho, na Livraria Saraiva do Midway Mall.
Sobre a autora:
Virgínia Woolf (1882 – 1941) nasceu em
Londres e escreveu, além de romances, inúmeros contos e resenhas para jornais.
A partir da morte da mãe, em 1895, Virgínia começou a apresentar os primeiros
sinais de depressão, doença que a acompanharia ao longo de sua vida. Figura de
proa da sociedade intelectual britânica, participou do grupo de Bloomsbury,
círculo de artistas que eram contrários às tradições literárias em voga até então.
Sofrendo por conta da depressão, Virgínia se suicidou em um rio próximo à casa
onde morava. (Fonte: Nova Fronteira)
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