03 junho 2017

Memorial de Aires


Percepção. Esta é a palavra que define o último romance escrito por Machado de Assis, “Memorial de Aires”, antes da morte do escritor, em 1908, mesmo ano de publicação da obra.

Aires é um diplomata aposentado que está de volta ao Rio de Janeiro do final do século XIX, período de turbulências políticas no Brasil devido ao movimento de abolição da escravatura e proclamação da República. Apesar do contexto social, a obra nos mostra que as preocupações dos indivíduos estão muito mais voltadas às peculiaridades de suas próprias vidas, do que em relação ao todo, exceto quando as mudanças os afetam diretamente.

Viúvo, Aires mantém um diário no qual registra não apenas fatos relevantes do seu cotidiano pessoal e social e as impressões que têm destes e daqueles que os envolvem, mas revela a relação de cumplicidade que tem com o papel, para quem também escreve, destacando o perigo que seria se alguém tivesse acesso às confissões ali feitas.

Papel, amigo papel, não recolhas tudo o que escrever esta pena vadia. Querendo servir-me, acabarás desservindo-me, porque se acontecer que que eu me vá desta vida sem tempo de te reduzir a cinzas, os que me lerem depois da missa de sétimo dia, ou antes, ou ainda antes do enterro, podem cuidar que te cofio cuidados de amor. Não, papel. Quando sentires que insisto nessa nota, esquiva-te da minha mesa, e foge.


O livro nos apresenta os registros de Aires de 9 de janeiro de 1888 a 30 de agosto de 1889. A cada entrada, menção aos encontros com a irmã, também viúva; com amigos e seus respectivos familiares; a situação política do país; e todo o drama inerente ao ser humano, das doenças às relações que o caracterizam como ser social.

Durante visita ao cemitério para visitar o túmulo dos pais e do cunhado, Aires e a irmã, Rita, encontraram a filha de um amigo em comum que brigou com os pais para casar com o homem que amava. Pouco tempo após o enlace, o marido faleceu e a viúva passou a ser presença constante no túmulo, além de ter sido abrigada na casa de um tio.

A conversa a respeito da vida da viúva, Fidélia, bem mais jovem que Aires, culminou com uma aposta entre ele e Rita, sobre a possibilidade de Fidélia firmar novo casamento. Aires acreditava em uma nova união, enquanto Rita não só duvidava da possibilidade de um novo enlace, como desafiou o irmão a ser o novo marido dela. A aposta é apontada por Aires como tendo similaridades ao pacto fáustico que marca a obra “Fausto”, de Goethe.

Os relatos feitos no diário de Aires trazem as características deste tipo de documento, em geral compostos por textos sem pudores, recheados pelos sentimentos, percepções e pensamentos mais íntimos daquele que os escreve. Associado a isso, temos a ironia e o sarcasmo característicos de Machado de Assis que, antes da primeira entrada do diário, revela ao leitor que o texto em formato de diário foi mantido, porém, com algumas partes excluídas, para dar ênfase ao enredo escolhido para este romance.

Vai como estava, mas desbastada e estreita, conservando só o que liga o mesmo assunto. O resto aparecerá um dia, se aparecer algum dia.


Não apareceu, já que este foi o último trabalho do escritor. Porém, é importante lembrar que Aires é uma personagem que integra a obra anterior de Machado de Assis, “Esaú e Jacó”, na qual a manutenção do diário por Aires é destacada na narrativa, já despertando o interesse do leitor para este livro de memórias.

Qual!, não posso interromper o Memorial; aqui me tenho outra vez com a pena na mão. Em verdade, dá certo gosto deitar ao papel coisas que querem sair da cabeça, por via da memória ou da reflexão. Venhamos novamente à notação dos dias. Desta vez o que me põe a pena na mão é a sombra da sombra de uma lágrima...


Com um texto de fácil degustação, “Memorial de Aires” é um livro que vale a leitura não só pela qualidade da obra e por ter Machado de Assis como autor, mas por também nos trazer elementos relevantes da história do Brasil e da cultura à época do final do Segundo Reinado.

Esta foi a primeira obra que li da Coleção Saraiva de Bolso e gostei bastante desta edição, que conta com 164 páginas e, além de bem trabalhada, é bastante prática e com preços muito acessíveis!

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