23 outubro 2017

Os Donos do Poder | Capítulo II


Compreender a história do Brasil é um desafio, mesmo para os mais atentos olhares. Fazer isso, a partir da compreensão do desenvolvimento político, econômico e social de outras nações, dá ao leitor novas perspectivas a respeito dos mesmos fatos, ao mesmo tempo em que apresenta justificativas para determinadas realidades.

Apesar desta trajetória não ser a mais fácil, ela torna a jornada muito mais rica. Este foi o caminho traçado por Raymundo Faoro, em Os Donos do Poder | Formação do Patronato Político Brasileiro, obra publicada pela primeira vez em 1957.

No Capítulo II da obra, intitulado A Revolução Portuguesa, Faoro apresenta nas cinco partes que o compõem o processo de estruturação da monarquia capitalista portuguesa. O autor destaca que dois episódios foram marcantes neste processo: a ascensão da Dinastia de Avis e o reinado de dom Manuel.

Entre os séculos XIV e XVI, o território português foi marcado por lutas pelo poder entre a nobreza, o clero, a burguesia emergente e o povo, chamado de arraia-miúda, todos sob a tutela do rei.

As divergências econômicas entre a classe dos empregadores e os profissionais conhecidos como jornaleiros, por terem as jornadas de trabalho pagas por dia, resultou em significativo impacto na produção agrícola. Para reverter a situação, o então rei Afonso IV determinou a obrigatoriedade do trabalho com o pagamento determinado em tabelas previamente definidas. O resultado prático desta situação foi a transformação do trabalhador em servo, de acordo com a perspectiva medieval de relações de trabalho.

Sob pressão da burguesia, a realeza portuguesa, então representada pelo protecionista rei dom Fernando I, amplia a obrigatoriedade de lavrar a terra aos proprietários sob a possibilidade de perda da posse do território.

É no meio desta confusão de interesses políticos, econômicos e, sobretudo, de poder, que se dá a Revolução de Avis, com um golpe realizado em 6 de dezembro de 1383, a partir do qual o filho bastardo dom Pedro, o Mestre de Avis, assume a liderança dos revoltosos que não aceitam que uma mulher assuma o trono. O Mestre Avis, que se tornaria dom João I, o primeiro rei da Dinastia de Avis, age sobre a orientação do conspirador Alvaro Pais e assim:

A monarquia se define na crise de 1383 – 85 - mas as bases vinham de longe, filtradas nas impurezas que os privilégios senhoriais e territoriais ameaçam sepultar.

A estrutura sobre a qual a sociedade portuguesa se desenvolveu foi a do estamento que pode ser compreendida como a camada que comanda a economia junto ao rei.

O estamento político constitui sempre uma comunidade, embora amorfa: os seus membros pensam e agem conscientes de pertencer a um mesmo grupo, a um círculo elevado, qualificado para o exercício do poder.

Porém, Faoro destaca que esta camada não deve ser confundida com classe social.

Ao contrário da classe, no estamento não vinga a igualdade das pessoas -  o estamento é, na realidade, um grupo de membros cuja elevação se calca na desigualdade social. (...). Os estamentos governam, as classes negociam. (...). Os estamentos são órgãos do Estado, as classes são categorias sociais.

O autor explica que a o estamento, consequência natural do Estado Patrimonial que vigorava em Portugal, viabilizou a atividade econômica que sustentava a nobreza e o que chamou de “seu ócio de ostentação”, a partir do apoio dado às suas empresas e a estabilização da economia em troca do direito de dirigi-la de maneira direta.

Isso significa dizer que coube ao Estado, a partir da adoção de uma estrutura cada vez mais burocrática, organizar o comércio, apoiar a indústria e a manutenção da terra, determinar os salários e os preços para garantir o desenvolvimento da nação em beneficio daqueles que a dirigem.

O Estado, desta forma elevado a uma posição prevalente, ganha poder, internamente, contra as instituições e classes particularistas e, externamente, se estrutura como nação em confronto com outras nações.

Ou seja, o Estado reúne em si mesmo os poderes político e econômico, delegando-o de acordo com suas necessidades e interesses. Porém, apesar do desenvolvimento e fortalecimento que a aventura ultramarina possibilitou ao Estado e ao capitalismo por ele praticado, não houve investimento em conhecimento.

A utilização técnica do conhecimento cientifico, uma das bases da expansão do capitalismo industrial, sempre foi, em Portugal e no Brasil, fruto importado. Não brotou a ciência das necessidades práticas do país.

No decorrer dos séculos até a ascensão de dom Manuel, a ideologia do estamento foi consolidada a partir da prática do mercantilismo, da ciência e do direito, sendo esta ideologia transferida para o Brasil. No período de reinado de dom Manuel, assassinatos e leis viabilizaram a consolidação do modelo de Estado tornado realidade a partir da dinastia de Avis.

O Brasil, de terra a explorar, converte-se, em três séculos de assimilação, no herdeiro de uma longa história em cujo seio pulsa a Revolução de Avis e a corte de dom Manuel.

Leitura que segue para o Capítulo III | O Congelamento do Estamento Burocrático.

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