Compreender a história do Brasil é um desafio, mesmo para os
mais atentos olhares. Fazer isso, a partir da compreensão do desenvolvimento
político, econômico e social de outras nações, dá ao leitor novas perspectivas
a respeito dos mesmos fatos, ao mesmo tempo em que apresenta justificativas
para determinadas realidades.
Apesar desta trajetória não ser a mais fácil, ela torna a
jornada muito mais rica. Este foi o caminho traçado por Raymundo Faoro, em Os Donos do Poder | Formação do Patronato
Político Brasileiro, obra publicada pela primeira vez em 1957.
No Capítulo II da obra, intitulado A Revolução Portuguesa, Faoro apresenta nas cinco partes que o
compõem o processo de estruturação da monarquia capitalista portuguesa. O autor
destaca que dois episódios foram marcantes neste processo: a ascensão da
Dinastia de Avis e o reinado de dom Manuel.
Entre os séculos XIV e XVI, o território português foi
marcado por lutas pelo poder entre a nobreza, o clero, a burguesia emergente e
o povo, chamado de arraia-miúda, todos sob a tutela do rei.
As divergências econômicas entre a classe dos empregadores e
os profissionais conhecidos como jornaleiros, por terem as jornadas de trabalho
pagas por dia, resultou em significativo impacto na produção agrícola. Para
reverter a situação, o então rei Afonso IV determinou a obrigatoriedade do
trabalho com o pagamento determinado em tabelas previamente definidas. O
resultado prático desta situação foi a transformação do trabalhador em servo,
de acordo com a perspectiva medieval de relações de trabalho.
Sob pressão da burguesia, a realeza portuguesa, então
representada pelo protecionista rei dom Fernando I, amplia a obrigatoriedade de
lavrar a terra aos proprietários sob a possibilidade de perda da posse do território.
É no meio desta confusão de interesses políticos, econômicos
e, sobretudo, de poder, que se dá a Revolução de Avis, com um golpe realizado
em 6 de dezembro de 1383, a partir do qual o filho bastardo dom Pedro, o Mestre
de Avis, assume a liderança dos revoltosos que não aceitam que uma mulher
assuma o trono. O Mestre Avis, que se tornaria dom João I, o primeiro rei da
Dinastia de Avis, age sobre a orientação do conspirador Alvaro Pais e assim:
A monarquia se define na crise de 1383 – 85 - mas as bases vinham de longe, filtradas nas impurezas que os privilégios senhoriais e territoriais ameaçam sepultar.
A estrutura sobre a qual a sociedade portuguesa se desenvolveu
foi a do estamento que pode ser compreendida como a camada que comanda a
economia junto ao rei.
O estamento político constitui sempre uma comunidade, embora amorfa: os seus membros pensam e agem conscientes de pertencer a um mesmo grupo, a um círculo elevado, qualificado para o exercício do poder.
Porém, Faoro destaca que esta camada não deve ser confundida
com classe social.
Ao contrário da classe, no estamento não vinga a igualdade das pessoas - o estamento é, na realidade, um grupo de membros cuja elevação se calca na desigualdade social. (...). Os estamentos governam, as classes negociam. (...). Os estamentos são órgãos do Estado, as classes são categorias sociais.
O autor explica que a o estamento, consequência natural do
Estado Patrimonial que vigorava em Portugal, viabilizou a atividade econômica que
sustentava a nobreza e o que chamou de “seu ócio de ostentação”, a partir do
apoio dado às suas empresas e a estabilização da economia em troca do direito
de dirigi-la de maneira direta.
Isso significa dizer que coube ao Estado, a partir da adoção
de uma estrutura cada vez mais burocrática, organizar o comércio, apoiar a indústria
e a manutenção da terra, determinar os salários e os preços para garantir o desenvolvimento
da nação em beneficio daqueles que a dirigem.
O Estado, desta forma elevado a uma posição prevalente, ganha poder, internamente, contra as instituições e classes particularistas e, externamente, se estrutura como nação em confronto com outras nações.
Ou seja, o Estado reúne em si mesmo os poderes político e econômico,
delegando-o de acordo com suas necessidades e interesses. Porém, apesar do
desenvolvimento e fortalecimento que a aventura ultramarina possibilitou ao
Estado e ao capitalismo por ele praticado, não houve investimento em
conhecimento.
A utilização técnica do conhecimento cientifico, uma das bases da expansão do capitalismo industrial, sempre foi, em Portugal e no Brasil, fruto importado. Não brotou a ciência das necessidades práticas do país.
No decorrer dos séculos até a ascensão de dom Manuel, a
ideologia do estamento foi consolidada a partir da prática do mercantilismo, da
ciência e do direito, sendo esta ideologia transferida para o Brasil. No
período de reinado de dom Manuel, assassinatos e leis viabilizaram a consolidação
do modelo de Estado tornado realidade a partir da dinastia de Avis.
O Brasil, de terra a explorar, converte-se, em três séculos de assimilação, no herdeiro de uma longa história em cujo seio pulsa a Revolução de Avis e a corte de dom Manuel.
Leitura que segue para o Capítulo III | O Congelamento do
Estamento Burocrático.
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