09 outubro 2017

Abusado – O Dono do Morro Dona Marta


Em meados do mês de setembro passado, o noticiário nacional passou a veicular novo episódio da guerra pelo controle do tráfico de drogas no Rio de Janeiro, em especial na favela da Rocinha. Os registros trouxeram à tona a memória de episódios similares registrados nas comunidades cariocas desde a década de 1980, sem que uma resposta eficaz do Estado Brasileiro fosse dada à situação.

Olhar para trás na tentativa de compreender o porquê de termos chegado a esta situação sem conseguir vislumbrar uma solução real para a guerra civil que testemunhamos, apesar de tentarmos minimizar a realidade dando outros nomes ao que de fato ela é, é angustiante.

No livro-reportagem Abusado -  O Dono do Morro Dona Marta, de Caco Barcellos, publicado em 2005 pela Editora Record, o leitor tem a oportunidade de acompanhar o resgate histórico da constituição da Favela Santa Marta, localizada no Morro Dona Marta, e da estruturação do tráfico no local, bem como as guerras vivenciadas pelas quatro gerações do Comando Vermelho que atuam na área e a expansão deste comércio para além dos limites estaduais e nacionais.

Resultado de um trabalho de quatro anos de pesquisa, contatos e convivência com criminosos e moradores da Santa Marta, o livro coloca em nossas mãos a realidade dos excluídos de absolutamente tudo, desde o registro de um endereço oficial ao acesso aos serviços públicos mais básicos, isso num período que vai do final da década de 1970 até 2003.

A percepção de que a ausência do Estado resulta em uma lacuna que é preenchida por outros tipos de organizações, sejam elas legais – como a Igreja – ou ilegais, é constatada. Além disso, a compreensão da inexistência de mocinhos e bandidos nesta guerra civil é algo que realmente nos aflige, não só como leitores, mas sim como cidadãos.

O caminho trilhado pelos traficantes e demais criminosos que se associam ao tráfico e às práticas aterrorizantes de manutenção do poder indigna qualquer pessoa. Mas não é menos revoltante, senão mais, o papel de policiais que se associam ao crime em troca de propina, via venda de armas, atuação efetiva no próprio tráfico, na facilitação de fugas, entre outras atitudes, ao mesmo tempo em que empreendem caçadas brutais aos mesmos criminosos que ajudam a manter em atuação e não só no Rio de Janeiro.

Se por um lado temos os excluídos que enxergam na prática criminosa a saída para uma vida digna para eles e suas famílias, do outro lado temos os policiais que agem desta forma por opção. Entraram para a polícia porque quiseram, conheciam a realidade, bem como as responsabilidades. As escolhas foram feitas e jogar dos dois lados resulta na realidade que aí está.

O livro de Caco Barcellos nos mostra não só o que acontece dentro de comunidades como a favela Santa Marta, como também a rede que liga as pessoas envolvidas no crime, como elas buscam soluções para os problemas mais simples do cotidiano e como resolvem as desavenças. Essas são, geralmente, solucionadas com mortes, na maioria dos casos, cruéis, inclusive com a conivência e/ou omissão do Estado, via aparato policial.

Nas 560 páginas da obra, o leitor tem a chance de compreender a atuação de personagens que marcaram a história do tráfico no Rio de Janeiro, como é o caso de Marcinho VP, apresentado no livro sob o pseudônimo de Juliano. Além de liderar o tráfico e integrar o Comando Vermelho, VP conquistou notoriedade internacional por garantir a segurança de Michael Jackson e do diretor Spike Lee, durante a gravação do clipe da música “They don’t care about us” no Morro do qual era dono à época.


A fama de VP conquistada via fugas, leituras, contatos com intelectuais e entrevistas como a dada ao livro são apontadas como causa da morte do traficante, em 29 de julho de 2003.

Marcinho VP foi um dos 55 executados na cadeia de Bangu, localizada no Rio de Janeiro. O corpo de VP foi encontrado dentro de uma lata de lixo do presídio, coberto com os livros que gostava de ler. O crime é atribuído aos companheiros do Comando Vermelho que, mais uma vez, tiveram a conivência do Estado.

Optei por usar os codinomes ou apelidos conhecidos dos mais íntimos como forma de contar as histórias de crimes sem precisar mutilar a verdade. Durante os quatro anos de produção do livro, muitos deles foram presos, torturados, mortos sempre de forma brutal. A experiência reforçou meu repudio à cultura da punição perversa, contra quem já nasceu condenado a todas as formas de injustiça. Caco Barcellos

A releitura do livro revelou-se muito mais angustiante do que a primeira experiência, há dez anos. O contexto muda nosso olhar e a realidade exige que este exercício seja feito por cada um de nós, especialmente, por ser incômodo, pois tira a venda dos nossos olhos ao nos levar a perceber o outro e as formas como nos associamos de maneiras bem diferentes. Vale muito a leitura!

Documentário Notícias de Uma Guerra Particular

Uma das referências apontadas pelo jornalista Caco Barcellos para a construção do livro-reportagem foi o documentário de João Moreira Salles: Notícias de Uma Guerra Particular. Com cerca de uma hora de duração, o vídeo dá voz aos soldados do tráfico, traficantes, moradores da comunidade e policiais sobre a guerra que os envolve. Dentre os depoimentos, o do então chefe de polícia do Rio de Janeiro (1995/1997), Hélio Luz, que joga para a sociedade brasileira a responsabilidade sobre a viabilização da solução eficaz que, até hoje, como se vê no caso da Rocinha, ainda não teve o respaldo que precisa para ser executada.

A sociedade quer uma polícia que não seja corrupta? É fácil. Não é difícil. (...). A gente coloca para a sociedade: há interesse em ter uma polícia que não seja corrupta? Porque uma polícia que não seja corrupta vai ser que nem nos demais países. Você não para num local proibido, porque o cara vai chegar lá e te aplica uma multa. Você não avança o sinal. Começa no trânsito. Você não picha. Você não faz nada! Então a gente chega e atua na favela e atua no Posto 9. Para de cheirar em Ipanema. Vai ter mandado de segurança pé-na-porta na Delfim Moreira. Não é isso? Essa é uma polícia que não é corrupta. Ela não tem limites. A sociedade vai conseguir segurar isso? Hélio Luz -  Chefe de Polícia do Rio de Janeiro (1995/1997)
Notícias de Uma Guerra Particular | João Moreira Salles 

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