Se neste início de século XXI encontramos dificuldades para
discutir as questões de gênero sem que interlocutores - tanto do sexo masculino, quanto do feminino
- torçam o nariz, por entender que este
debate cabe em moldes previamente estabelecidos, mesmo sendo uma construção
social, imaginem como não era há quase cem anos.
Escrito por Virgínia Woolf em 1928 e publicado no ano
seguinte, o ensaio “Um Teto Todo Seu” é resultado da preparação da autora para
a realização de uma palestra cujo tema era “mulheres e a ficção”.
Nesta edição da editora Tordesilhas, o texto do ensaio é
composto por 159 páginas, além do posfácio e anexos, nas quais Virgínia Woolf
adota uma persona que começa a refletir a respeito da mulher na literatura
inglesa desde o século XVI até chegar à modernidade do século XX.
Woolf destaca a inexistência de registros a respeito da
mulher comum na sociedade ao longo dos tempos, questiona o que teria acontecido
se escritores, como Shakespeare, por exemplo, tivessem irmãs tão talentosa
quanto eles. Será que ela teria escrito e conquistado espaço na sociedade, como
o suposto irmão?
Segundo Virgínia Woolf, certamente que não. Afinal, naquele
momento, o casamento era modo de sobrevivência para as mulheres (algumas ainda hoje
o percebem desta forma...) que não tinham nem mesmo o direito de usufruir de
possível herança. A administração cabia aos homens, apenas, assim como o acesso
à educação formal, entre outras coisas. À época, a mulher era vista como ser
inferior.
Porém, como a questão de gêneros é resultado da construção
social, a mudança dos valores e as reivindicações por mudanças, permitiu pouco
a pouco a conquista de espaço pelas mulheres. E é isso o que Virgínia Woolf nos
mostra ao analisar as obras de homens, como Johson, Gooethe, Shelley e
Voltaire, e mulheres, como as irmãs Bronte e Jane Austen, a forma de
construção, as dificuldades enfrentadas para a produção e manutenção da linha
de pensamento, assim como o enfrentamento de pressões para o atendimento de
padrões (inclusive na escrita) preconcebidos.
Virgínia Woolf vai além ao destacar que a perspectiva do
homem e da mulher em relação ao sexo oposto são diferentes e, porque não dizer,
incompletas.
Ainda assim, é óbvio mesmo na escrita de Proust ♥, que um homem tem dificuldades e é terrivelmente parcial em seu conhecimento das mulheres, assim como uma mulher o é em seu conhecimento dos homens.
Mais do que a perspectiva influenciada pelas questões
inerentes ao ser, Woolf observa que as estruturas cultural e social são
bastante relevantes nesta análise, tendo em vista o fato de as mulheres – por
tanto tempo consideradas como seres inferiores – viverem isoladas da própria
sociedade.
Se Tolstói tivesse vivido em um priorado em isolamento, como uma mulher casada “excluída das relações com o que é chamado de mundo”, por mais que o dever moral fosse edificante, dificilmente, pensei, ele teria escrito Guerra e Paz.
As mulheres que quebraram este modelo, mesmo que com textos
hoje analisados como de qualidade questionável, abriram caminho para que outras
tivessem a oportunidade de escrever, de expor seus pensamentos e formas de ver
o mundo, mesmo que ainda longe das condições adequadas para tal exercício.
Considerando que Mary Carmichael não era um gênio, mas uma garota desconhecida escrevendo o primeiro romance numa quitinete, se ter o suficiente do que seria de desejar - tempo, dinheiro e ócio -, ela não se saiu mal, pensei.
Para Virgínia Woolf, o que uma mulher precisa para escrever
é de um teto todo seu e 500 libras por ano para não se preocupar com dinheiro e
poder dar vida às ideias.
A totalidade da mente precisa estar aberta para termos a sensação de que o escritor está transmitindo sua experiência com perfeita plenitude. É preciso haver liberdade, é preciso haver paz. Nenhuma roda deve ranger, nenhuma luz deve piscar. As cortinas devem ser fechadas.
Mas não se engane! Não é por traçar a trajetória feminina na
literatura, pontuar dificuldades e avanços, que Virgínia Woolf se opõe aos
homens. Ao contrário disso, ela destaca a importância da parceria entre os
sexos para que a produção se torne profícua, respeitando as diferenças e
convergências.
Agora o escritor, penso eu, tem a chance de viver mais do que as outras pessoas na presença dessa realidade. É a sua função encontrá-la, coletá-la e transmiti-la ao restante de nós. É o que infiro ao ler Rei Lear, Emma ou Em busca do tempo perdido. Pois ler esses livros parece desempenhar uma operação curiosa de burilação dos sentidos; vê-se de forma mais clara depois disso; o mundo parece despido de suas cobertas e provido de vida mais intensa. Essas são as pessoas invejáveis que vivem em inimizade com a irrealidade; e esses são os deploráveis, que levam na cabeça pelas coisas feitas sem conhecimento ou cuidado. Portanto, quando lhes peço que ganhem dinheiro e tenham um espaço para si, estou pedindo, ao que parece, que levem uma vida revigorante na presença da realidade, que consigam ou não transmiti-la.
Ao final deste livro foram disponibilizadas entradas do
diário de Virgínia Woolf que retratam parte do seu processo de produção, desta
e de outras obras. Sem dúvida, este é um texto que merece ser lido por todos,
tanto pela forma quanto pelo conteúdo! Que texto!!!
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