24 julho 2017

Um Teto Todo Seu


Se neste início de século XXI encontramos dificuldades para discutir as questões de gênero sem que interlocutores -  tanto do sexo masculino, quanto do feminino -  torçam o nariz, por entender que este debate cabe em moldes previamente estabelecidos, mesmo sendo uma construção social, imaginem como não era há quase cem anos.

Escrito por Virgínia Woolf em 1928 e publicado no ano seguinte, o ensaio “Um Teto Todo Seu” é resultado da preparação da autora para a realização de uma palestra cujo tema era “mulheres e a ficção”.

Nesta edição da editora Tordesilhas, o texto do ensaio é composto por 159 páginas, além do posfácio e anexos, nas quais Virgínia Woolf adota uma persona que começa a refletir a respeito da mulher na literatura inglesa desde o século XVI até chegar à modernidade do século XX.

Woolf destaca a inexistência de registros a respeito da mulher comum na sociedade ao longo dos tempos, questiona o que teria acontecido se escritores, como Shakespeare, por exemplo, tivessem irmãs tão talentosa quanto eles. Será que ela teria escrito e conquistado espaço na sociedade, como o suposto irmão?

Segundo Virgínia Woolf, certamente que não. Afinal, naquele momento, o casamento era modo de sobrevivência para as mulheres (algumas ainda hoje o percebem desta forma...) que não tinham nem mesmo o direito de usufruir de possível herança. A administração cabia aos homens, apenas, assim como o acesso à educação formal, entre outras coisas. À época, a mulher era vista como ser inferior.

Porém, como a questão de gêneros é resultado da construção social, a mudança dos valores e as reivindicações por mudanças, permitiu pouco a pouco a conquista de espaço pelas mulheres. E é isso o que Virgínia Woolf nos mostra ao analisar as obras de homens, como Johson, Gooethe, Shelley e Voltaire, e mulheres, como as irmãs Bronte e Jane Austen, a forma de construção, as dificuldades enfrentadas para a produção e manutenção da linha de pensamento, assim como o enfrentamento de pressões para o atendimento de padrões (inclusive na escrita) preconcebidos.

Virgínia Woolf vai além ao destacar que a perspectiva do homem e da mulher em relação ao sexo oposto são diferentes e, porque não dizer, incompletas.


Ainda assim, é óbvio mesmo na escrita de Proust ♥, que um homem tem dificuldades e é terrivelmente parcial em seu conhecimento das mulheres, assim como uma mulher o é em seu conhecimento dos homens.

Mais do que a perspectiva influenciada pelas questões inerentes ao ser, Woolf observa que as estruturas cultural e social são bastante relevantes nesta análise, tendo em vista o fato de as mulheres – por tanto tempo consideradas como seres inferiores – viverem isoladas da própria sociedade.


Se Tolstói tivesse vivido em um priorado em isolamento, como uma mulher casada “excluída das relações com o que é chamado de mundo”, por mais que o dever moral fosse edificante, dificilmente, pensei, ele teria escrito Guerra e Paz.

As mulheres que quebraram este modelo, mesmo que com textos hoje analisados como de qualidade questionável, abriram caminho para que outras tivessem a oportunidade de escrever, de expor seus pensamentos e formas de ver o mundo, mesmo que ainda longe das condições adequadas para tal exercício.

Considerando que Mary Carmichael não era um gênio, mas uma garota desconhecida escrevendo o primeiro romance numa quitinete, se ter o suficiente do que seria de desejar - tempo, dinheiro e ócio -, ela não se saiu mal, pensei.

Para Virgínia Woolf, o que uma mulher precisa para escrever é de um teto todo seu e 500 libras por ano para não se preocupar com dinheiro e poder dar vida às ideias.


A totalidade da mente precisa estar aberta para termos a sensação de que o escritor está transmitindo sua experiência com perfeita plenitude. É preciso haver liberdade, é preciso haver paz. Nenhuma roda deve ranger, nenhuma luz deve piscar. As cortinas devem ser fechadas.

Mas não se engane! Não é por traçar a trajetória feminina na literatura, pontuar dificuldades e avanços, que Virgínia Woolf se opõe aos homens. Ao contrário disso, ela destaca a importância da parceria entre os sexos para que a produção se torne profícua, respeitando as diferenças e convergências.

Agora o escritor, penso eu, tem a chance de viver mais do que as outras pessoas na presença dessa realidade. É a sua função encontrá-la, coletá-la e transmiti-la ao restante de nós. É o que infiro ao ler Rei Lear, Emma ou Em busca do tempo perdido. Pois ler esses livros parece desempenhar uma operação curiosa de burilação dos sentidos; vê-se de forma mais clara depois disso; o mundo parece despido de suas cobertas e provido de vida mais intensa. Essas são as pessoas invejáveis que vivem em inimizade com a irrealidade; e esses são os deploráveis, que levam na cabeça pelas coisas feitas sem conhecimento ou cuidado. Portanto, quando lhes peço que ganhem dinheiro e tenham um espaço para si, estou pedindo, ao que parece, que levem uma vida revigorante na presença da realidade, que consigam ou não transmiti-la.

Ao final deste livro foram disponibilizadas entradas do diário de Virgínia Woolf que retratam parte do seu processo de produção, desta e de outras obras. Sem dúvida, este é um texto que merece ser lido por todos, tanto pela forma quanto pelo conteúdo! Que texto!!!

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