15 novembro 2017

Dom Casmurro


No Jornalismo aprendemos que o texto é de quem lê. Tal afirmação tem o objetivo de alertar quanto as diversas interpretações que um texto pode ter e que, para minimizar o impacto desta realidade, o autor deve buscar a máxima objetividade possível para delimitar/orientar a faixa de compreensão.

Este é, sem dúvida, um trabalho difícil de ser executado, pois, além do filtro às impressões pessoais é necessário desenvolver a capacidade de perceber as interpretações que outro olhar pode dar àquilo que se propõe passar.

Em obras literárias como Dom Casmurro (1899), de Machado de Assis, tal perspectiva é subvertida, tendo em vista o real propósito de estimular diversas interpretações e sensações a cada leitor. Obras deste tipo são denominadas abertas e, não por acaso, venceram a barreira do tempo e permanecem como objeto de estudo, além de estarem no centro das mais acaloradas discussões.

Se ao tratar desta obra temos que responder se Capitu traiu ou não traiu Bentinho, ouso afirmar que não. Apesar de, em alguns momentos, ter percebido a dúvida plantada na minha percepção, a releitura de Dom Casmurro apenas reafirmou a visão que tinha da insegurança exacerbada do narrador do livro, Bento Santiago, o Dom Casmurro.

No processo de registro de suas memórias, Bentinho, que é um narrador com mais de 50 anos, revela às leitoras como conheceu e se tornou amigo e marido de Capitu. Mais do que isso, revela os passos que marcaram sua formação enquanto homem e bacharel em Direito, que teve uma passagem pelo seminário, onde conheceu Escobar, seu melhor – e provavelmente único – amigo que, posteriormente, se tornou – na perspectiva de Bentinho – seu próprio algoz.

Bentinho acredita que Capitu o traiu com Escobar e que Ezequiel, filho que tem com ela é na verdade filho do amigo. Esta é a teoria que Bentinho passa o livro inteiro tentando nos convencer, com base na descrição da personalidade de Capitu que, desde a infância e adolescência, se revela muito mais mulher do que ele homem, como o próprio autor nos diz.


E... quê? Sabes o que é que trocariam mais; se o não achas por ti mesmo, escusado é ler o resto do capítulo e do livro, não acharás mais nada, ainda que eu o diga com todas as letras da etimologia. Mas se o achaste, compreenderás que eu, depois de estremecer, tivesse ímpeto de atirar-me portão fora, descer o resto da ladeira, correr, chegar à casa Pádua, agarrar Capitu e intimar-lhe que me confessasse quantos, quantos, quantos já lhe dera o peralta da vizinhança. Não fiz nada.

Mas não, Bentinho não foi capaz de me convencer. Na verdade continuo acreditando que a paranoia dele é baseada na insegurança que marca sua personalidade desde a infância. Os surtos de ciúme de Capitu que ele mesmo revela ter tido durante a vida e com os quais ela aprende a lidar, reforçam tal percepção.

A inspiração que Machado de Assis buscou na peça Otelo (já tem resenha aqui ), de Shakespeare, que Bentinho inclusive assiste em Dom Casmurro, reforça tal interpretação. Otelo se deixou enganar pelo ciúme, o que é forte indicativo de que Bento Santiago seguiu o mesmo caminho.

Dom Casmurro é uma obra de complexidade psicológica desenvolvida em um texto que revela um enredo envolvente, com uma problemática que jamais será esclarecida e, justamente por isso, merece ser lida e relida, pois a depender do seu momento, contexto e construção enquanto ser, certamente a leitura terá desfechos diferentes.


Por falar nisso, é natural que me perguntes se, sendo antes tão cioso dela, não continuei a sê-lo apesar do filho e dos anos. Sim, senhor, continuei. Continuei, a tal ponto que o menor gesto me afligia, a mais ínfima palavra, uma insistência qualquer; muita vez só a indiferença bastava. Cheguei a ter ciúme de tudo e de todos. Um vizinho, um par de valsa, qualquer homem, moço ou maduro, me enchia de terror ou desconfiança. É certo que Capitu gostava de ser vista, e o meio mais próprio a tal (disse-me uma senhora, um dia) é ver também, e não há ver sem mostrar que se vê.

Machado de Assis sendo Machado de Assis. 💭

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