No Jornalismo aprendemos que o texto é de quem lê. Tal afirmação
tem o objetivo de alertar quanto as diversas interpretações que um texto pode
ter e que, para minimizar o impacto desta realidade, o autor deve buscar a
máxima objetividade possível para delimitar/orientar a faixa de compreensão.
Este é, sem dúvida, um trabalho difícil de ser executado,
pois, além do filtro às impressões pessoais é necessário desenvolver a
capacidade de perceber as interpretações que outro olhar pode dar àquilo que se
propõe passar.
Em obras literárias como Dom
Casmurro (1899), de Machado de Assis, tal perspectiva é subvertida, tendo
em vista o real propósito de estimular diversas interpretações e sensações a
cada leitor. Obras deste tipo são denominadas abertas e, não por acaso, venceram
a barreira do tempo e permanecem como objeto de estudo, além de estarem no
centro das mais acaloradas discussões.
Se ao tratar desta obra temos que responder se Capitu traiu
ou não traiu Bentinho, ouso afirmar que não. Apesar de, em alguns momentos, ter
percebido a dúvida plantada na minha percepção, a releitura de Dom Casmurro apenas reafirmou a visão que
tinha da insegurança exacerbada do narrador do livro, Bento Santiago, o Dom
Casmurro.
No processo de registro de suas memórias, Bentinho, que é um
narrador com mais de 50 anos, revela às leitoras como conheceu e se tornou
amigo e marido de Capitu. Mais do que isso, revela os passos que marcaram sua formação
enquanto homem e bacharel em Direito, que teve uma passagem pelo seminário,
onde conheceu Escobar, seu melhor – e provavelmente único – amigo que, posteriormente,
se tornou – na perspectiva de Bentinho – seu próprio algoz.
Bentinho acredita que Capitu o traiu com Escobar e que
Ezequiel, filho que tem com ela é na verdade filho do amigo. Esta é a teoria
que Bentinho passa o livro inteiro tentando nos convencer, com base na descrição
da personalidade de Capitu que, desde a infância e adolescência, se revela muito
mais mulher do que ele homem, como o próprio autor nos diz.
E... quê? Sabes o que é que trocariam mais; se o não achas por ti mesmo, escusado é ler o resto do capítulo e do livro, não acharás mais nada, ainda que eu o diga com todas as letras da etimologia. Mas se o achaste, compreenderás que eu, depois de estremecer, tivesse ímpeto de atirar-me portão fora, descer o resto da ladeira, correr, chegar à casa Pádua, agarrar Capitu e intimar-lhe que me confessasse quantos, quantos, quantos já lhe dera o peralta da vizinhança. Não fiz nada.
Mas não, Bentinho não foi capaz de me convencer. Na verdade
continuo acreditando que a paranoia dele é baseada na insegurança que marca sua
personalidade desde a infância. Os surtos de ciúme de Capitu que ele mesmo
revela ter tido durante a vida e com os quais ela aprende a lidar, reforçam tal
percepção.
A inspiração que Machado de Assis buscou na peça Otelo (já tem resenha aqui ), de Shakespeare, que Bentinho inclusive assiste em Dom Casmurro, reforça tal interpretação. Otelo se deixou enganar
pelo ciúme, o que é forte indicativo de que Bento Santiago seguiu o mesmo
caminho.
Dom Casmurro é uma
obra de complexidade psicológica desenvolvida em um texto que revela um enredo
envolvente, com uma problemática que jamais será esclarecida e, justamente por
isso, merece ser lida e relida, pois a depender do seu momento, contexto e construção
enquanto ser, certamente a leitura terá desfechos diferentes.
Por falar nisso, é natural que me perguntes se, sendo antes tão cioso dela, não continuei a sê-lo apesar do filho e dos anos. Sim, senhor, continuei. Continuei, a tal ponto que o menor gesto me afligia, a mais ínfima palavra, uma insistência qualquer; muita vez só a indiferença bastava. Cheguei a ter ciúme de tudo e de todos. Um vizinho, um par de valsa, qualquer homem, moço ou maduro, me enchia de terror ou desconfiança. É certo que Capitu gostava de ser vista, e o meio mais próprio a tal (disse-me uma senhora, um dia) é ver também, e não há ver sem mostrar que se vê.
Machado de Assis sendo Machado de Assis. 💭
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