05 junho 2016

Pelo o que você luta?

 O anúncio da morte de Muhammad Ali na madrugada de 4 de junho me levou a dar prioridade ao documentário Facing Ali (2009) que já estava há algum tempo na minha lista do Netflix. Gosto bastante de biografias, pois elas nos ensinam de forma prática que não há sucesso sem dedicação, disciplina e superação, por mais talento que tenhamos.

O filme dirigido por Pete McCormack revela a trajetória de tricampeão dos pesos-pesados do boxe a partir dos relatos dos adversários mais marcantes enfrentados por Ali, como Joe Frazier e George Foreman -  sim, aquele da panela elétrica. 

Além de nos dar detalhes sobre os duelos que tiveram com Ali dentro do ringue, os lutadores nos mostram que o boxe deu a cada um deles a força que precisavam para lutar por mudanças em suas respectivas realidades.

Com uma história que envolve um período entre 1958 a 1981, ano da aposentadoria de Ali e do meu nascimento, o documentário nos permite identificar o perfil dos lutadores que, em sua maioria, eram negros e de origem pobre, muitas vezes envolvidos em roubos, tráfico, assassinatos e com passagem por prisões, que viram o boxe como a luta por suas vidas.

Muhammad Ali, que nasceu Cassius Clay, teve trajetória similar à da maioria dos companheiros de luta. Mas além de ter um talento excepcional que o levou a se destacar e, como mostram os relatos, a elevar o nível do boxe, soube aproveitar a notoriedade conquistada para lutar contra o racismo e o preconceito religioso. 

A mudança no nome aconteceu após ter se convertido ao islamismo, razão pela qual se negou ir para a Guerra do Vietnã, postura que resultou em sua suspensão do esporte e confisco dos títulos por três anos e meio.

Diferente da maioria dos lutadores, Ali também se destacou pelos discursos que fazia e pela ‘língua afiada’. A boa oratória foi resultado dos ensinamentos sobre ciência política e história, por exemplo, que recebeu de ícones da luta racial e religiosa, como Malcolm X, que Ali soube aproveitar para usar em benefício da coletividade. A postura adotada por Muhammad Ali o tornou referência na comunidade negra norte-americana.

A sabedoria no uso das palavras e o talento para “voar como uma borboleta e picar como uma abelha” não foram suficientes para fazer com que Ali parasse de lutar antes que as agressões sofridas durante as lutas resultassem em danos irreversíveis à saúde. A vaidade e a ambição por montantes inimagináveis de dinheiro o levaram a continuar aceitando desafios, apesar de não ter mais condições físicas para enfrentar os jovens pugilistas.

Muhammad Ali foi diagnosticado com Mal de Parkinson pouco depois de se aposentar e, apesar de não haver consenso de que a causa do desenvolvimento da doença tenha sido os danos que as lutas causaram ao cérebro do boxeador, há a crença de que a atividade esportiva certamente acelerou o processo. Aliás, quase todos os adversários enfrentados por Ali que participam do documentário apresentam ou relatam problemas de saúde. Este é parte do preço que pagam pelo sucesso alcançado.
Os depoimentos, que aparecem mesclados com declarações de Ali, imagens e vídeos da época dos fatos relatados, nos mostram a fragilidade por trás daqueles fortes e duros seres humanos que viram no ringue a chance de sobrevivência. 

Esta dualidade, que geralmente é esquecida quando estamos diante dos ícones do esporte, só é lembrada quando o corpo não mais responde da mesma forma e a decadência dá lugar ao que antes era brilho e vitória. Os vídeos que mostram as últimas lutas de Ali demonstram bem esta realidade. 

Antes de Muhammad Ali ser o melhor (The Greatest) ele era um ser humano, mas que optou por não se render às limitações que o tempo trouxe, se esconder sob a dura carcaça que julgava invencível, até que foi vencido pelo próprio corpo. Ele que tanto lutou pela igualdade social, esqueceu de preservar a si mesmo. 

Facing Ali é emocionante por revelar os ícones e suas lutas além do ringue. Vale a pena!


Facing Ali tem direção de Pete McComack 

Amai, pois, vossa alma, mas cuidai também do corpo, instrumento da alma; desconhecer as necessidades que são indicadas pela própria natureza, é desconhecer a lei de Deus. (LE)

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