03 maio 2016

Elogio da Loucura

Em tempos de crise política, acredito não ter tomado decisão mais acertada do que ler o Elogio da Loucura, de Erasmo de Roterdam, edição de 2001 que integra a Coleção Universidade da Editora Ediouro. Originalmente publicado em 1509, o texto é marcado pelo sarcasmo do autor e se mostra totalmente pertinente à atualidade, ao abordar a hipocrisia nossa de cada dia. Esta edição conta ainda com as ilustrações originais de Hans Holbein Les Crayonna, de 1525.

A obra tem como narradora a Loucura que, a partir dos exemplos relatados, se coloca no mesmo patamar dos deuses ao associar-se ao amor-próprio, à adulação, ao esquecimento, à fadiga, à volúpia, irreflexão, à delícia, fortuna, ao riso e ao prazer à mesa, assim como ao sono profundo.
Apesar de se igualar aos deuses, a Loucura ressalta que

“(...), a verdade é que os outros deuses não são bons e benéficos para todos os mortais, sendo a Loucura a única deusa que cumula de favores todo o gênero humano. E o admirável é que a minha generosidade não é manchada por nenhum interesse. Sou a única que não exige nem votos nem ofertas. ”

Para cada sentimento e sensação, a Loucura desenvolve argumentos que nos permitem visualizar a situação descrita com tamanha clareza que a risada em boa parte da leitura é inevitável. Ao fazer uso da ironia no decorrer do texto, Erasmo de Roterdam nos convida a uma reflexão crítica a respeito dos usos e costumes que nos guiam enquanto sociedade formalmente instituída e que, geralmente, infringimos.

Segundo o autor, o Elogio à Loucura é uma prática usual de todos os humanos, “pois a loucura é natural no homem”. E é o contraponto entre os loucos e os sábios que nos permite ir de um lado para o outro nesta avaliação sobre a maneira como devemos viver e a que realmente vivemos.

Assim como faz com os sentimentos e sensações, a Loucura apresenta sua explicação acerca do que professam os artistas, os filósofos, os detentores de poder, os assessores, os pregadores, os religiosos, os devotos, os ignorantes e os eruditos, entre outros, e como de fato vivem. Erasmo de Roterdam, na voz da Loucura, ressalta que é ela quem garante aos indivíduos a felicidade. Se vivessem o que professam, diz ela, estariam fadados ao tédio!

O texto se desenvolve de maneira divertida, apesar dos longos parágrafos que em alguns momentos tornam a leitura cansativa. Mas a forma de argumentação é um impulso para superar a falta de ar que a exposição da ideia em longos trechos pode causar. Exemplo disso é o que a Loucura diz sobre o dever dos príncipes e monarcas -  que pode ser estendida aos detentores de poder em geral:

“(...) observemos em que consistem as obrigações de um homem que é posto à testa de uma nação. Deve dedicar-se dia e noite ao bem público e nunca ao seu interesse privado; pensar exclusivamente no que é vantajoso para o povo; ser o primeiro a observar as leis de que é autor e depositário, sem desviar-se nunca de nenhuma delas; observar, com firmeza e com os próprios olhos, a integridade dos secretários e magistrados; ter sempre presente que todos têm olhares fixos na sua conduta pública e privada, podendo ele, à maneira de um astro salutar, influir beneficamente sobre as coisas humanas, ou, como um infausto cometa, causar as maiores desolações. Não deve esquecer-se nunca de que os vícios e os delitos dos súditos são infinitamente menos contagiosos que os do senhor, e repetir diariamente, a si mesmo, que o príncipe se acha numa elevação, razão  por que, quando dá maus exemplos, a sua conduta é uma peste que se comunica rapidamente, fazendo enormes estragos; refletir que a fortuna de um monarca expõe continuamente ao perigo de abandonar o justo caminho; resistir aos prazeres, à impureza, à adulação, ao luxo, pois nunca estará suficientemente preparado para reprimir tudo o que pode seduzi-lo. Deve, finalmente, conservar sempre na memória que, além das insídias, dos ódios, dos temores, de todos os males a que o príncipe se acha exposto a cada momento por parte dos súditos, deverá ele, mais cedo ou mais tarde, apresentar-se perante o tribunal dos Reis, no qual lhe serão pedidas contas exatas de todos os seus menores atos, sendo este julgado com rigor proporcional à extensão do seu domínio. Repito, pois, mais uma vez, que, se um príncipe refletisse bem sobre tudo isso, como o teria feito se fosse um pouquinho sábio, decerto não poderia comer nem dormir tranquilamente um só dia na vida. Mas não vos arreceeis, pois consegui um remédio para isso. Com favor da minha inspiração, os príncipes descansam tranquilos sobre o seu destino e sobre os seus ministros, vivendo na ociosidade e só mantendo relações com pessoas que possam contribuir para diverti-los de qualquer aflição ou aborrecimento.”

A explicação da Loucura para o comportamento dos detentores de poder, feita no início do Século XVI, nos permite compreender a postura adotada hoje pelos nossos representantes, nas três esferas de poder, não é mesmo?

Mas não pense que a Loucura se baseia apenas na descrição dos fatos para defender seus argumentos. Ela embasa sua argumentação por meio da citação e transcrição de trechos da Bíblia, tanto do Antigo quanto do Novo Testamento, nos quais se “declara que a vida humana, como também eu já vos disse tantas vezes, não é outra coisa senão um divertimento da Loucura”.

Sim, as questões religiosas, mais especificamente as cristãs, são abordadas na obra. Nela, a Loucura nos mostra o paradoxo dos debates travados em defesa da fé em detrimento da prática dos ensinamentos de amor e caridade do Cristo. Este, aliás, no momento da crucificação pediu a Deus que perdoasse os que estavam contra ele, pelo fato de serem loucos, “porque que não sabem o que fazem”.

É com base nesses pensamentos que ela, a Loucura, encerra o livro nos aconselhando: “(...) sede sãos, aplaudi, vivei, bebei, oh celebérrimos iniciados nos mistérios da Loucura”.


Assim como no caso dos políticos, o relato da narrativa nos permite associar os casos a diversos fatos e personagens do nosso cotidiano. Não sei se a vida imita a arte ou se a arte imita a vida, mas por mais que exista os que vejam essas associações como toscas, elas nada mais são do que a descrição do que somos e construímos. Erasmo de Roterdam comprova isso em um texto escrito há mais de 500 anos e que é completamente atual. Não há dúvida de que a leitura deste clássico literário vale a pena!

"A loucura é natural no homem."


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