14 maio 2024

Trecho de Ponta Negra está impróprio para banho há quatro semanas consecutivas

Devido aos riscos à saúde humana, legislação ambiental determina a interdição de áreas nessas condições por órgãos de controle ambiental

 

Água da praia do Morro do Careca atende, simultaneamente, aos dois critérios
que a classificam como imprópria para recreação



A água da praia do Morro do Careca, em Ponta Negra, mais importante cartão-postal de Natal/RN, está imprópria para banho há quatro semanas consecutivas. A informação foi divulgada no Boletim nº 19/2024 de Classificação das Condições de Balneabilidade das Praias do Rio Grande do Norte, neste sábado, 11 de maio de 2024, no site do Instituto de Desenvolvimento Sustentável e Meio Ambiente (Idema). A classificação é definida com base na quantidade de coliformes fecais encontrada nas amostras coletadas semanalmente em 33 estações localizadas em Natal, Parnamirim, Extremoz e Nísia Floresta.

A constatação da impropriedade da água para o contato deveria, segundo a legislação ambiental, resultar em interdição da praia, desde a primeira semana, pelo órgão de controle ambiental. Até o momento, nada foi feito.

Seguindo a Resolução nº 274, de 29 de novembro de 2000, do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), o monitoramento da balneabilidade, ou seja, da qualidade da água utilizada para banho e recreação de contato primário, no Rio Grande do Norte, é feito desde 2001 pelo Programa Água Azul, resultado da parceria entre Idema, IFRN e Funcern.

A análise sistemática tem como objetivo garantir as condições de qualidade necessárias para que o contato direto do corpo com a água em atividades como natação, mergulho e esqui aquático, por exemplo, não afetem a saúde e o bem-estar dos usuários.

A condição da qualidade da água é classificada, pelo Projeto Água Azul, a partir da identificação da quantidade de coliformes fecais termotolerantes por 100 mililitros de água, o que a coloca nas categorias “Própria” ou “Imprópria”, de acordo com a Resolução nº 274/2000. Quando “Própria”, a água pode ser considerada “excelente”, “muito boa” ou “satisfatória”.

Categorias

Limite de coliformes termotolerantes (NMP/100ml)
 

Própria

ExcelenteMáximo de 250 em 80% ou mais das amostras
Muito BoaMáximo de 500 em 80% ou mais das amostras
SatisfatóriaMáximo de 1000 em 80% ou mais das amostras
ImprópriaAcima de 1000 em mais de 20% das amostras

Acima de 2500 na última amostra

O resultado da análise é considerado “satisfatório” quando em 80% ou mais de um conjunto de amostras obtidas no mesmo local, em cada uma das cinco semanas anteriores, houver, no máximo, 1000 coliformes fecais por 100 ml. Isso significa dizer que o resultado da análise não é absoluto e deve ser considerado relativamente ao conjunto das cinco semanas anteriores, por isso, o boletim semanal do Programa Água Azul apresenta o resultado da análise das cinco últimas coletas analisadas.

No Boletim nº 19/2024, o trecho de Ponta Negra, na praia do Morro do Careca, apresenta duas condições simultâneas de impropriedade, duas semanas com mais de 1000 coliformes fecais termotolerantes por 100 ml de água e mais de 2500 em uma única coleta, chegando a 4500 coliformes fecais na amostra de 100 ml de água coletada em 18 de abril. Nas semanas seguintes, a água permanece classificada como imprópria porque no conjunto das cinco semanas há mais do que 20% de amostras com mais de 1000 coliformes por 100 ml.

Datas da Coleta | Nº do BoletimNA-01| Ponta Negra (Morro do Careca)
11/04/2024 | 15/20241500 | Própria
18/04/2024 | 16/20244500 | Imprópria
25/04/2024 | 17/202420 | Imprópria
02/05/2024 | 18/2024134 | Imprópria
09/05/2024 | 19/20245 | Imprópria

A classificação da água do trecho analisado é definida como “Imprópria”, conforme o parágrafo 4º do Artigo 2º da Resolução 274/2000 do Conama, quando é verificada pelo menos uma das seguintes ocorrências:

    1. Não atendimento aos critérios estabelecidos para águas próprias;
    2. Valor obtido na última amostragem for superior a 2500 coliformes fecais (termotolerantes);
    3. Incidência elevada ou anormal, na Região de enfermidades por via hídrica, indicada pelas autoridades sanitárias;
    4. Presença de resíduos ou despejos, sólidos ou líquidos, inclusive esgotos sanitários, óleos, graxas e outras substâncias, capazes de oferecer riscos à saúde ou tornar desagradável a recreação;
    5. PH < 6,0 ou PH > 9,0 (águas doces), à exceção das condições naturais;
    6. Floração de algas ou outros organismos, até que se comprove que não oferecem risco à saúde humana;
    7. Outros fatores que contraindiquem, temporária ou permanentemente, o exercício da recreação de contato.

Na praia de Ponta Negra é possível verificar pelo menos três das condições expostas acima: a quantidade elevada de coliformes fecais nas amostras (a e b); o despejo de resíduos, inclusive esgotos sanitários (d); e a floração, ou seja, a proliferação excessiva, de algas que não foram submetidas à análise (f).

Doutor em Química, Douglisnilson Ferreira, um dos responsáveis pela análise da balneabilidade, explica que a Resolução do Conama permite a verificação da presença de até três patógenos (Coliformes fecais termotolerantes, Escherichia coli e Enterococos) e que o Programa Água Azul faz apenas a análise de coliformes, o que é considerado um termômetro do cenário.

Segundo ele, no processo de análise realizado no Programa Água Azul, não é possível detectar a presença de toxinas, pois a análise da floração, por exemplo, que pode acontecer em casos específicos, demandaria um tempo maior, podendo ser de meses. “O que a análise da balneabilidade identifica é se a água está própria para o contato com a pele. Se ela estiver imprópria para o contato com a pele, imagine para engolir. Se fossemos conscientes, com 4500 não teria ninguém na praia, mas as pessoas acham que nunca vai acontecer com elas. Temos mais coragem do que juízo”, observou.

O Boletim de Balneabilidade é assinado pelo Doutor em Geologia, Ronaldo Diniz, pelo Doutor em Engenharia Sanitária, André Luiz Calado, e por Ferreira. Ele explica que a coleta da água é feita a um metro de profundidade porque a superfície tem mais interferência ambiental, inclusive do homem, o que significa dizer que é mais poluída.

As causas dessa poluição podem ser vistas por qualquer pessoa em uma caminhada na extensão do calçadão de Ponta Negra, que tem cerca de 2,5 km. Esgoto dos banheiros construídos pela Prefeitura de Natal sendo destinado in natura para a praia, por exemplo, estão ali para quem quiser ver. Também de responsabilidade da Prefeitura de Natal, as tubulações de drenagem urbana, construídas para coletar as águas da chuva, despejam rejeitos diretamente na praia, mesmo nos dias mais ensolarados.

Sistema de drenagem urbana escoa para a praia água que, em dia ensolarado, não é da chuva


Essa situação acontece em frente aos hotéis localizados à beira-mar de Ponta Negra, local frequentado diariamente por turistas e praticantes de esporte que parecem não se incomodar com as interferências no cenário natural, com o mau cheiro do esgoto, a revoada de pombos que habitam a extensão do calçadão e da praia, e nem com os riscos à saúde.

Responsabilidades e omissão

Composta por 15 artigos distribuídos em quatro páginas, aResolução do Conama nº 274, de 29 de novembro de 2000, trata dos parâmetros ambientais de qualidade das águas de forma objetiva de modo a minimizar a ocorrência de interpretações e dúvidas sobre o que observar na composição da água e quais as medidas a serem tomadas em decorrência do resultado da análise.

O primeiro ponto de destaque é o objetivo da norma que visa orientar à população. Por esta razão, no RN a coleta das amostras é feita às quintas-feiras e analisada no Laboratório de Balneabilidade, no Campus Central do IFRN. “O resultado é entregue às sextas-feiras para orientar os usuários sobre a condição da qualidade das águas das praias visando o uso no final de semana”, afirma Douglisnilson Ferreira.

Apesar da entrega do relatório ser feita pelo IFRN às sextas-feiras, apenas quatro dos 19 boletins publicados em 2024 foram disponibilizados no site do Idema no mesmo dia. A publicação é feita com mais frequência aos sábados (9), já tendo sido disponibilizada aos domingos (2) ou nas segundas-feiras (4), o que interfere no objetivo principal do acompanhamento feito pelo Programa Água Azul, de garantir à população de que o uso da água não afetará a saúde.

Mas este não é o único mecanismo de orientação à população previsto pela Resolução do Conama que, no Artigo 3º afirma: “Os trechos das praias e dos balneários serão interditados e sinalizados, se o órgão de controle ambiental, em quaisquer esferas, municipal, estadual ou federal, constatar a impropriedade das águas de recreação de contato primário.”

Em relação à praia de Ponta Negra, a Prefeitura de Natal é responsável pela gestão da água, desde dezembro de 2021, quando o Município assinou o Termo de Adesão à Gestão das Praias (TAGP)junto à Secretaria do Patrimônio da União (SPU/ME), que tem 20 anos de validade. Isso significa que o Município despeja esgoto na área que tem responsabilidade legal de preservar, sob pena de revogação do ato, tendo em vista que a municipalização não transfere o domínio, apenas a gestão, o que inclui (ou deveria incluir) o fortalecimento de medidas de proteção integradas ao uso e ao ordenamento das praias. O TAGP pode ser indeferido ou revogado pela Secretaria do Patrimônio da União, mas, até o momento, não há nenhuma iniciativa registrada.

O Governo do Estado, ao qual pertence o Idema, integra o Programa de análise da água, constata a impropriedade, divulga o boletim na página oficial da estrutura estatal, mas, até aqui, nenhuma providência foi tomada.

Os 29 vereadores que estão na Câmara Municipal de Natal, que neste ano buscam a reeleição, e têm entre as obrigações constitucionalmente definidas a fiscalização dos atos do Executivo, parecem alheios ao que acontece na praia mais importante da capital potiguar. Exemplo disso é o Projeto de Lei nº 238/2022, de autoria do vereador Milklei Leite (PV), que institui o “Programa Poluição Zero” com o objetivo de multar os responsáveis por atividades realizadas zona costeira e continental que contaminem a água e a areia, com exceção do Poder Público, o maior poluidor.

Depois de dois anos de tramitação, o Projeto de Lei foi aprovado por unanimidade em primeira e segunda discussão, realizadas nos dias 4 e 9 de abril de 2024, respectivamente, no plenário da Câmara, apesar de ter recebido três votos contrários, dos quatro registrados, à aprovação do parecer favorável da relatora, na Comissão de Legislação, Justiça e Redação Final. Além disso, o Projeto de Lei não levou em consideração as propostas anteriores identificados pela Casa Legislativa com temas similares, como também não tramitou nas comissões de Finanças, Orçamento, Controle e Fiscalização; e de Planejamento Urbano, Meio Ambiente e Habitação, como orientou a Procuradoria Legislativa da Câmara Municipal de Natal.

Também há dois anos, desde a publicação do Boletim nº 43/2022, publicado pelo Programa Água Azul em 10 de novembro de 2022, a praia de Areia Preta, no trecho da Praça da Jangada, é considerada “Imprópria” independente da quantidade de coliformes fecais termotolerantes identificados na amostra coletada semanalmente, por causa do lançamento de efluentes sanitários não tratados na praia, que formam a “língua negra”, visível a qualquer pessoa. Assim como em Ponta Negra, até o momento, nenhuma atitude foi tomada diante dessa constatação.

Em matéria publicada no site do Ministério Público do Rio Grande do Norte (MPRN), em 12 de janeiro de 2024, há o registro da inspeção judicial feita na orla de Ponta Negra, como parte do arco judicial assinado entre o MPRN e a Prefeitura de Natal, em dezembro de 2023, a partir do qual o Município se comprometeu em apresentar um plano de operação aos problemas identificados pelo órgão responsável pela defesa dos direitos e interesses da sociedade.

Ainda de acordo com a matéria, durante a visita à orla, que contou com a participação de vereadores e de integrantes da atual gestão municipal, foi possível identificar “crateras com o sistema de esgotamento rompido”, além do fedor e da situação precária dos banheiros, sujos e sem segurança para o uso da população. Apesar disso, a situação permanece a mesma.

Estrutura construída pela Prefeitura destina esgoto do banheiro público (prédio em cerâmica azul) diretamente para a praia


O artigo 9º da Resolução 274/2000 do Conama afirma que os órgãos de controle ambiental têm a responsabilidade de aplicar o que diz o documento; de divulgar as condições de balneabilidade das praias e balneários; bem como de fiscalizar o cumprimento da legislação pertinente. O artigo seguinte observa que na ausência ou omissão dos referidos órgãos de controle, o Ibama atuará diretamente. Não há registro dessa atuação até o momento.

Por sua vez, o artigo 13º ressalta que o não cumprimento da Resolução do Conama resultará em sanções aos infratores previstas nas leis 6938/1981, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente; 9605/1998, que dispõe sobre as sanções penais e administrativas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente; e no Decreto nº 3179/1999, revogado pelo Decreto nº 6519/2008, que dispõe sobre as infrações e sanções administrativas ao meio ambiente, por ações e  omissões que violem o uso, o gozo, a promoção, proteção e recuperação do meio ambiente.

Se fosse possível excluir a estação da praia de Areia Preta (trecho da Praça da Jangada), cuja impropriedade é considerada como permanente desde novembro de 2022, dos 19 boletins publicados pelo Programa Água Azul em 2024, apenas sete não teriam alguma praia de Natal considerada imprópria. Isso significa dizer que 64% das primeiras 19 semanas do corrente ano foram de alguma praia da cidade, que tem como principais geradores de renda o turismo, o comércio e o funcionalismo público, imprópria para banho. Como essa exclusão não é possível, temos 100% das 19 semanas com praias impróprias, sem nenhuma intervenção dos poderes públicos.

Natal, uma cidade “bonitinha, mas ordinária”

Em 1962, o Rio de Janeiro assistiu a primeira montagem de “Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas ordinária”, uma peça de Nelson Rodrigues que retrata a degradação moral de uma sociedade preocupada apenas com a manutenção da aparência, mesmo que corroída por dentro por falsos moralismos, pela corrupção e ambição sem limites.

O enredo do texto, de leitura incômoda e, ao mesmo tempo, fluída, possível de ser consumido em poucas horas, pode, por analogia, servir de parâmetro para a observação de Natal. A capital potiguar é uma cidade constituída por belezas naturais que fazem dela destino de viagem de todo aquele que busca um recanto ao mar. Porém, sob um olhar mais cuidadoso, o que se revela é que, apesar da aparência, a estrutura está corroída por dentro, por, no mínimo, omissão daqueles que têm por obrigação a preservação e o desenvolvimento urbano.

Exemplo disso pode ser observado nos dados do Censo de 2022relativos ao esgotamento sanitário, divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 23 de fevereiro de 2024.

Em 2010, por exemplo, Natal contava com 61,8% de esgotamento sanitário adequado, o que significa fizer que esse era o percentual de esgotamento por rede coletora ou fossa séptica. Em 2022, esse percentual chegou a 75,64%. Mas aqui é importante observar que esses dados incluem o percentual de unidades de domicílios particulares permanentes ocupados com esgotamento sanitário ligado à rede geral ou pluvial (42,47%); fossa séptica ou fossa filtro ligada à rede (2,82%); e fossa séptica ou fossa filtro não ligada à rede (30,35%).

Das informações que esses dados nos revelam, há uma equiparação que aproxima o percentual de domicílios atendidos pela rede de saneamento estruturada pelo Município e aqueles atendidos por iniciativa individual com as fossas sépticas, que não oferecem a mesma eficiência das estações de tratamento sanitário.

As fossas sépticas são estruturas que, em tese, têm a autorização da Prefeitura para serem instaladas para dar tratamento à parte da matéria orgânica do esgoto, que é a parte sólida. Nesse sistema, a parte líquida do esgoto pode ser destinada à rede geral, às galerias de águas pluviais (como as que chegam à praia de Ponta Negra), valas, sumidouros, rios, lagoas e / ou oceano. Além de ser um sistema que não atende a todos os parâmetros de saneamento básico exigidos por lei, oferece risco de contaminação do lençol freático e resulta em baixa remoção de nutrientes e patógenos.



Nessa conta, há ainda 24,36% dos domicílios particulares permanentes ocupados que destinam o esgoto para fossa rudimentar ou buraco (22,86%); vala (0,58%) rio, lago, córrego ou mar (0,44%); ou outra forma (0,45%).  Neste percentual também estão incluídos aqueles sem banheiro ou sanitário (0,02%).

Sem o saneamento da cidade, as praias serão tomadas por esgoto, com a consequente intensificação da ocorrência de doenças associadas à água contaminada, tanto por contato com a pele, como pela ingestão.  Entre elas estão gastroenterite, infecção bacteriana, cólera, leptospirose e hepatite a.

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